Um poema que é um mistério: uma menina que, aparentemente, pertence à
linhagem dos “senhores”, traz reminiscências que se revelam como “sombria visão”
a assaltar a mente de um jovem – o avançar misterioso da idade no rosto da
garota –, lampejo por meio do qual este se reconhece, então, como pertencente à
linhagem dos “escravos”.
Sem que se saiba dos fundamentos últimos que deram ensejo à pena de
Brines, fato é que o poema deixa transparecer uma antinomia que, se não for
atual, certamente no passado ter-se-ia estabelecido, entre classes sociais como
as que, no Brasil, Gilberto Freyre explorou no já hoje clássico “Casa Grande x
Senzala”.
Mas o olhar que se perverte, resultando na sobredita “sombria visão”,
seria exatamente o quê? Não o diz o poeta. Mas como se poderia inferir da
palavra “perversão”, deduzo tratar-se de expressão de desejo sexual que, no
caso em apreço, configuraria delito por defloramento. Seria tal interpretação do
poema um escólio “pervertido” do autor desta postagem? (rs). Qual
nada: o mais provável é que Brines aluda ao termo “escravo do desejo”, aplicável,
por exemplo, a Humbert em “Lolita”, de Nabokov.
J.A.R. – H.C.
Francisco Brines
(n. 1932)
La perversión de la mirada
La niña,
con los ojos
dichosos,
iba – rodeada
de luz, su sombra por
las viñas –
a la mar.
Le cantaban los
labios,
su corazón pequeño le
batía.
Los aires de las olas
volaban su cabello.
Un hombre, tras las
dunas,
sentado estaba,
al acecho del mar.
Reconocía la miseria
humana
en el gemido de las
olas,
la condición reclusa
de los vivos
aullando de dolor,
de soledad, ante un
destino ciego.
Absorto las veía
llegar del horizonte,
eran
el profundo cansancio
del tiempo.
Oyó, sobre la arena,
el rumor de unos pies
detenidos.
Ladeó la cabeza,
pesadamente
volvió los ojos:
la sombría visión que
imaginara
viró con él, todavía
prendida,
con esfuerzo.
Y el joven vio que el
rostro
de la niña
envejecía
misteriosamente.
Con ojos abrasados
miró hacia el mar:
las aguas
eran fragor, ruina.
Y humillado vio un
cielo
que, sin aves,
estallaba de luz.
Dentro le dolía una
sombra
muy vasta y fría.
Sintió en la frente
un fuego:
con tristeza se supo
de un linaje de
esclavos.
De: “Palabras a la oscuridad” (1966)
Saída da lua sobre o mar
(Caspar David
Friedrich: pintor alemão)
A perversão do olhar
A menina,
com os olhos ditosos,
dirigia-se – rodeada
de luz, sua sombra
pelas vinhas –
ao mar.
Cantavam-lhe os
lábios,
batia-lhe o pequeno
coração.
A brisa das ondas
soprava-lhe os
cabelos.
Um homem, atrás das
dunas,
sentado estava,
à espreita do mar.
Reconhecia a miséria
humana
no gemido das ondas,
a condição reclusa
dos vivos
uivando de dor,
de solidão, ante um
cego destino.
Absorto, vi-as
chegar do horizonte,
como
profundo cansaço do
tempo.
Ouviu, sobre a areia,
o rumor de uns pés refreados.
Inclinou a cabeça,
pesadamente
volveu os olhos:
a sombria visão que
imaginara
virou com ele, ainda
presa,
com esforço.
E o jovem viu que o
rosto
da menina
envelhecia
misteriosamente.
Com os olhos
abrasados
fitou o mar: as águas
eram fragor, ruína.
E humilhado viu um
céu
que, sem aves,
estalava de luz.
Dentro lhe doía uma
sombra
muito vasta e fria.
Sentiu um fogo em sua
fronte:
com tristeza,
soube-se
de uma linhagem de
escravos.
De: “Palavras à escuridão” (1966)
Referência:
BRINES, Francisco. La perversión de la
mirada. In: __________. Antología
poética. Selección y prólogo de José Olivio Jiménez. Madrid, ES: Alianza
Editorial, 1986. p. 83-84. (“Sección: Literatura”; “El Libro de Bolsillo”; LB
1190)
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