Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 11 de abril de 2018

John Milton - Satã (Excertos de “O Paraíso Perdido”) ‎

Muito já se disse que, no clássico de Milton, a figura que sobranceiramente domina as cenas é Satã – de forma que não há objeção que se estabeleça em contraposição a tal assertiva –, como se o poeta procurasse enfatizar a força tenaz do egoísmo e do interesse próprio, bem assim os sistemáticos triunfos da corrupção a devastar a inteireza do espírito humano.

 

Trata-se, de fato, de uma obra fantástica, com um poder de sugerir imagens como poucas há na literatura mundial, como o comprovam as inúmeras gravuras elaboradas pelo pintor e desenhista francês Gustave Doré, uma das quais selecionamos para ilustrar, mais abaixo, esta postagem.

 

J.A.R. – H.C.

 

John Milton

(1608-1674)

(Retrato de Autoria Desconhecida)

 

Satan

 

Say first – for Heaven hides nothing from thy view.

Nor the deep tract of Hell – say first what cause

Moved our grand Parents, in that happy state,

Favoured of Heaven so highly, to fall off

From their Creator, and transgress his will

For one restraint, lords of the World besides.

Who first seduced them to that foul revolt?

The infernal Serpent; he it was whose guile,

Stirred up with envy and revenge, deceived

The mother of mankind, what lime his pride

Had cast him out from Heaven, with all his host

Of rebel Angels, by whose aid, aspiring

To set himself in glory above his peers,

He trusted to have equalled the Most High,

If he opposed, and, with ambitious aim

Against the throne and monarchy of God.

Raised impious war in Heaven and battle proud,

With vain attempt. Him the Almighty Power

Hurled headlong flaming from the ethereal sky,

With hideous ruin ancl combustion, down

To bottomless perdition, there to dwell

In adamantine chains and penal fire,

Who durst defy the Omnipotent to arms.

Nine times the space that measures day and night

To mortal men, he, with his horrid crew,

Lay vanquished, rolling in the fiery gulf,

Confounded, though immortal. But his doom

Reserved him to more wrath; for now the thought

Both of lost happiness and lasting pain

Torments him: round he throws his baleful eyes,

That witnessed huge affliction and dismay,

Mixed with obdurate pride and steadfast hate.

At once, as far as Angels ken, he views

The dismal situation waste and wild.

A dungeon horrible, on all sides round,

As one great furnace flamed; yet from those flames

No light; but rather darkness visible

Served only to discover sights of woe,

Regions of sorrow, doleful shades, where peace

And rest can never dwell, hope never comes

That comes to all, but torture without end

Still urges, and a fiery deluge, fed

With ever-burning sulphur unconsunled.

Such place Eternal Justice had prepared

For those rebellious; here their prison ordained

In utter darkness, and their portion set,

As far removed from God and light of Heaven

As from the centre thrice to the utmost pole.

Oh, how unlike the place from whence they fell!

[...]

Forthwith upright he rears from off the pool

His mighty stature; on each hand the flames

Driven backward slope their pointing spires, and, rowled

In billows, leave i’ the midst a horrid vale.

Then with expanded wings he steers his flight

Aloft, incumbent on the dusky air,

That felt unusual weight; till on dry land

He lights – if it were land that ever burned

With solid, as the lake with liquid fire;

And such appeared in hue as when the force

Of subterranean wind transports a hill

Torn from Pelorus, or the shattered side

Of thundering Ætna, whose combustible

And fuelled entrails, thence conceiving fire,

Sublimed with mineral fury, aid the winds,

And leave a singèd bottom all involved

With stench and smoke, Such resting found the sole

Of unblest feet. Him followed his next Mate;

Both glorying to have scaped the Stygian flood

As gods, and by their own recovered strength,

Not by the sufferance of supernal power.

[...]

All these and more came flocking: but with looks

Downcast and damp; yet such wherein appeared

Obscure some glimpse of joy to have found their Chief

Not in despair, to have found themselves not lost

In loss itself; which on his countenance cast

Like doubtful hue. But he, his wonted pride

Soon recollecting, with high words, that bore

Semblance of worth, not substance, gently raised

Their fainting courage, and dispelled their fears:

Then straight commands that, at the warlike sound

Of trumpets loud and clarions, be upreared

His mighty standard. That proud honor claimed

Azazel as his right, a Cherub tall:

Who forthwith from the glittering staff unfurled

The imperial ensign; which, full high advanced,

Shone like a meteor streaming to the wind,

With gems and golden lustre rich emblazed,

Seraphic arms and trophies; all the while

Sonorous metal blowing martial sounds:

At which the universal host: up-sent

A shout that tore Hell’s concave, and beyond

Frighted the reign of Chaos and old Night.

 

From: “Paradise Lost” (Book 1)

 

Gravura para “Paraíso Perdido”

(Gustave Doré: artista francês)

 

Satan

 

Dize primeiro, tu que observas tudo

No Céu sublime, no profundo Inferno,

Dize primeiro a causa irresistível

Que mover pôde os pais da prole humana,

Em tão próspera sina, ao Céu tão caros,

A apostatar de Deus que o ser lhes dera

E a transgredir a lei que lhes ditara,

Sendo só num objeto restringidos,

No mais senhores do universo Mundo?

Quem lhes urdiu a sedução malvada

Que os lançou em tão feia rebeldia?

O Dragão infernal. Com torpe engano,

Por inveja e vinganças instigado,

Ele iludiu a mãe da humana prole,

Lá depois que seu ímpeto soberbo

O expulsara dos Céus com a imensa turba

Dos rebelados anjos, seus consócios.

Confiado num exército tamanho,

Aspirando no Empíreo a ter assento

De seus iguais acima, destinara

Ombrear com Deus, se Deus se lhe opusesse;

E com tal ambição, com tal insânia,

Do Onipotente contra o império e trono

Fez audaz e ímpio guerra, deu batalhas.

Mas da altura da abóbada celeste

Deus, com a mão cheia de fulmíneos dardos,

O arrojou de cabeça ao fundo Abismo,

Mar lúgubre de ruínas insondável,

A fim que atormentado ali vivesse

Com grilhões de diamante e intenso fogo

O que ousou desafiar em campo o Eterno.

Pelo espaço que abrange no orbe humano

Nove vezes o dia e nove a noite,

Ele com sua multidão horrenda,

A cair estiveram derrotados

Apesar de imortais, e confundidos

Rolaram nos cachões de um mar de fogo.

Sua condenação, porém, o guarda

Para mais fero horror: e vendo agora

Perdida a glória, perenal a pena,

Este duplo prospecto na alma o punge.

Lança em roda ele então os tristes olhos

Que imensa dor e desalento atestam,

Soberba empedernida, ódio constante:

Eis quando de improviso vê, contempla,

Tão longe como os anjos ver costumam,

A terrível mansão, torva, espantosa,

Prisão de horror que imensa se arredonda

Ardendo como amplíssima fornalha.

Mas luz nenhuma dessas flamas se ergue;

Vertem somente escuridão visível

Que baste a pôr patente o hórrido quadro

Destas regiões de dor, medonhas trevas

Onde o repouso e a paz morar não podem,

Onde a esperança, que preside a tudo,

Nem sequer se lobriga: os desgraçados

Interminável aflição lacera

E de fogo um dilúvio alimentado

De enxofre abrasador, inconsumível.

A justiça eternal tinha disposto

Para aqueles rebeldes este sítio:

Ali foram nas trevas exteriores

Seu cárcere e recinto colocados,

Longe do excelso Deus, da luz empírea,

Distância tripla da que os homens julgam

Do centro do orbe à abóbada estrelada.

Oh! como esse lugar, onde ora penam,

É diverso do Céu donde caíram!

[...]

Logo a monstruosa corpulência eleva

Vertical sobre o lago; as fluidas chamas,

Lançadas para trás, eis que se inclinam

Em agudos debruns de novo ao centro,

E desabando encapeladas formam

Um vale, todo horror. Abrindo as asas

Dirige para cima um leve voo,

Equilibrado em ferrugíneos ares

Que sob o peso não usual gemeram;

Depois se foi pousar na seca terra,

Se era terra o que ardia em duro fogo

Como ardia a lagoa em fogo fluido.

Neste comenos se afigura o monstro

Penedo enorme que tufões subtérreos

Expelem do Peloro derrocado

Ou do horríssono bojo do Etna em fúrias,

Cujas entranhas, que abrasadas dentro

Até ali ferviam em cachões de fogo,

Erguem-se agora de tufões pungidas

Furibunda explosão jogando aos ares,

Crestando largo espaço que povoam

De mefítico cheiro e negro fumo;

Tais os malditos pés ali pousaram!

Seu imediato sócio logo o segue,

Gloriando-se ambos por se verem salvos

Do lago Estígio, como deuses que eram,

Sem permissão do onipotente Nume,

Mas pela própria força recobrada.

[...]

Já toda a multidão as praias enche:

Nos macerados, abatidos olhos

Inda mostram uns longes de alegria,

Vendo que o chefe seu não desespera,

E que eles mesmos não estão perdidos

Dentro da própria perdição imersos.

Em seu porte Satã descobre indícios

De dúvida e receio, mas ostenta

Sua soberba usual e, em frase altiva,

De brio tendo a cor e não a essência,

Com garbo ateia seu valor mortiço,

E os temores dos sócios afugenta.

Ordena logo que ao guerreiro toque

De ruidosos clarins, de feras tubas,

Seja erguido seu válido estandarte:

Por jus antigo tão soberbas honras

Azael pede, serafim gigante,

Que pronto da hástia refulgente solta,

Ao mavórcio clangor do cavo bronze,

A bandeira imperial que no ar subida,

Qual meteoro que os ventos arrebatam,

Brilhou com o lustre do ouro e ínclitas gemas,

Com troféus, com seráficas divisas;

E ao mesmo passo o exército levanta

Um aplauso estrondoso que enche os ares,

Penetra o fundo Inferno, e vai dar sustos

Ao Caos tenebroso, à Noite antiga.

 

De: “Paraíso Perdido” (Livro 1)

 

Referências:

 

Em Inglês

 

MILTON, John. Paradise lost: excerpts from book 1. In: __________. The complete poems of John Milton: written in english with introduction, notes and illustrations. Edited by Charles W. Eliot LL. D. New York, NY: P. F. Collier & Son, 1909. p. 91-92; 95-96; 103-104. (‘The Harvard Classics’; v. 4)

 

Em Português

 

MILTON, John. Paraíso perdido: excertos do livro 1. Tradução de António José de Lima Leitão‎. In: __________. Paraíso perdido. Tomo I: contendo os seis primeiros cantos. Tradução de António José de Lima Leitão. Lisboa, PT: Typ. de J. M. R. e Castro, 1840. p. 4-6; 11-12; 23-24.

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