Muito já se disse
que, no clássico de Milton, a figura que sobranceiramente domina as cenas é
Satã – de forma que não há objeção que se estabeleça em contraposição a tal
assertiva –, como se o poeta procurasse enfatizar a força tenaz do egoísmo e do
interesse próprio, bem assim os sistemáticos triunfos da corrupção a devastar a
inteireza do espírito humano.
Trata-se, de fato, de
uma obra fantástica, com um poder de sugerir imagens como poucas há na
literatura mundial, como o comprovam as inúmeras gravuras elaboradas pelo
pintor e desenhista francês Gustave Doré, uma das quais selecionamos para
ilustrar, mais abaixo, esta postagem.
J.A.R. – H.C.
John Milton
(1608-1674)
(Retrato de Autoria Desconhecida)
Satan
Say first – for Heaven hides nothing from thy view.
Nor the deep tract of
Hell – say first what cause
Moved our grand
Parents, in that happy state,
Favoured of Heaven so
highly, to fall off
From their Creator,
and transgress his will
For one restraint,
lords of the World besides.
Who first seduced
them to that foul revolt?
The infernal Serpent; he it was whose guile,
Stirred up with envy
and revenge, deceived
The mother of
mankind, what lime his pride
Had cast him out from
Heaven, with all his host
Of rebel Angels, by
whose aid, aspiring
To set himself in
glory above his peers,
He trusted to have
equalled the Most High,
If he opposed, and,
with ambitious aim
Against the throne
and monarchy of God.
Raised impious war in
Heaven and battle proud,
With vain attempt.
Him the Almighty Power
Hurled headlong
flaming from the ethereal sky,
With hideous ruin
ancl combustion, down
To bottomless
perdition, there to dwell
In adamantine chains
and penal fire,
Who durst defy the
Omnipotent to arms.
Nine times the space that measures day and night
To mortal men, he,
with his horrid crew,
Lay vanquished,
rolling in the fiery gulf,
Confounded, though
immortal. But his doom
Reserved him to more
wrath; for now the thought
Both of lost
happiness and lasting pain
Torments him: round
he throws his baleful eyes,
That witnessed huge
affliction and dismay,
Mixed with obdurate
pride and steadfast hate.
At once, as far as
Angels ken, he views
The dismal situation
waste and wild.
A dungeon horrible,
on all sides round,
As one great furnace
flamed; yet from those flames
No light; but rather
darkness visible
Served only to
discover sights of woe,
Regions of sorrow,
doleful shades, where peace
And rest can never
dwell, hope never comes
That comes to all,
but torture without end
Still urges, and a
fiery deluge, fed
With ever-burning
sulphur unconsunled.
Such place Eternal
Justice had prepared
For those rebellious;
here their prison ordained
In utter darkness,
and their portion set,
As far removed from
God and light of Heaven
As from the centre
thrice to the utmost pole.
Oh, how unlike the
place from whence they fell!
[...]
Forthwith upright he rears from off the pool
His mighty stature;
on each hand the flames
Driven backward slope
their pointing spires, and, rowled
In billows, leave i’
the midst a horrid vale.
Then with expanded
wings he steers his flight
Aloft, incumbent on
the dusky air,
That felt unusual
weight; till on dry land
He lights – if it
were land that ever burned
With solid, as the
lake with liquid fire;
And such appeared in
hue as when the force
Of subterranean wind
transports a hill
Torn from Pelorus, or
the shattered side
Of thundering Ætna,
whose combustible
And fuelled entrails,
thence conceiving fire,
Sublimed with mineral
fury, aid the winds,
And leave a singèd
bottom all involved
With stench and
smoke, Such resting found the sole
Of unblest feet. Him
followed his next Mate;
Both glorying to have
scaped the Stygian flood
As gods, and by their
own recovered strength,
Not by the sufferance
of supernal power.
[...]
All these and more came flocking: but with looks
Downcast and damp;
yet such wherein appeared
Obscure some glimpse
of joy to have found their Chief
Not in despair, to
have found themselves not lost
In loss itself; which
on his countenance cast
Like doubtful hue.
But he, his wonted pride
Soon recollecting,
with high words, that bore
Semblance of worth,
not substance, gently raised
Their fainting courage,
and dispelled their fears:
Then straight
commands that, at the warlike sound
Of trumpets loud and
clarions, be upreared
His mighty standard.
That proud honor claimed
Azazel as his right,
a Cherub tall:
Who forthwith from
the glittering staff unfurled
The imperial ensign;
which, full high advanced,
Shone like a meteor
streaming to the wind,
With gems and golden
lustre rich emblazed,
Seraphic arms and
trophies; all the while
Sonorous metal
blowing martial sounds:
At which the
universal host: up-sent
A shout that tore
Hell’s concave, and beyond
Frighted the reign of
Chaos and old Night.
From: “Paradise Lost”
(Book 1)
Gravura para “Paraíso Perdido”
(Gustave Doré: artista francês)
Satan
Dize primeiro, tu que observas tudo
No Céu sublime, no
profundo Inferno,
Dize primeiro a causa
irresistível
Que mover pôde os
pais da prole humana,
Em tão próspera sina,
ao Céu tão caros,
A apostatar de Deus
que o ser lhes dera
E a transgredir a lei
que lhes ditara,
Sendo só num objeto
restringidos,
No mais senhores do
universo Mundo?
Quem lhes urdiu a
sedução malvada
Que os lançou em tão
feia rebeldia?
O Dragão infernal. Com torpe engano,
Por inveja e
vinganças instigado,
Ele iludiu a mãe da
humana prole,
Lá depois que seu
ímpeto soberbo
O expulsara dos Céus
com a imensa turba
Dos rebelados anjos,
seus consócios.
Confiado num exército
tamanho,
Aspirando no Empíreo
a ter assento
De seus iguais acima,
destinara
Ombrear com Deus, se
Deus se lhe opusesse;
E com tal ambição,
com tal insânia,
Do Onipotente contra
o império e trono
Fez audaz e ímpio
guerra, deu batalhas.
Mas da altura da
abóbada celeste
Deus, com a mão cheia
de fulmíneos dardos,
O arrojou de cabeça
ao fundo Abismo,
Mar lúgubre de ruínas
insondável,
A fim que atormentado
ali vivesse
Com grilhões de
diamante e intenso fogo
O que ousou desafiar
em campo o Eterno.
Pelo espaço que abrange no orbe humano
Nove vezes o dia e
nove a noite,
Ele com sua multidão
horrenda,
A cair estiveram
derrotados
Apesar de imortais, e
confundidos
Rolaram nos cachões
de um mar de fogo.
Sua condenação,
porém, o guarda
Para mais fero
horror: e vendo agora
Perdida a glória,
perenal a pena,
Este duplo prospecto
na alma o punge.
Lança em roda ele
então os tristes olhos
Que imensa dor e
desalento atestam,
Soberba empedernida,
ódio constante:
Eis quando de
improviso vê, contempla,
Tão longe como os
anjos ver costumam,
A terrível mansão,
torva, espantosa,
Prisão de horror que
imensa se arredonda
Ardendo como
amplíssima fornalha.
Mas luz nenhuma
dessas flamas se ergue;
Vertem somente
escuridão visível
Que baste a pôr
patente o hórrido quadro
Destas regiões de
dor, medonhas trevas
Onde o repouso e a
paz morar não podem,
Onde a esperança, que
preside a tudo,
Nem sequer se
lobriga: os desgraçados
Interminável aflição
lacera
E de fogo um dilúvio
alimentado
De enxofre abrasador,
inconsumível.
A justiça eternal
tinha disposto
Para aqueles rebeldes
este sítio:
Ali foram nas trevas
exteriores
Seu cárcere e recinto
colocados,
Longe do excelso
Deus, da luz empírea,
Distância tripla da
que os homens julgam
Do centro do orbe à
abóbada estrelada.
Oh! como esse lugar,
onde ora penam,
É diverso do Céu
donde caíram!
[...]
Logo a monstruosa corpulência eleva
Vertical sobre o
lago; as fluidas chamas,
Lançadas para trás,
eis que se inclinam
Em agudos debruns de
novo ao centro,
E desabando
encapeladas formam
Um vale, todo horror.
Abrindo as asas
Dirige para cima um
leve voo,
Equilibrado em
ferrugíneos ares
Que sob o peso não
usual gemeram;
Depois se foi pousar
na seca terra,
Se era terra o que
ardia em duro fogo
Como ardia a lagoa em
fogo fluido.
Neste comenos se
afigura o monstro
Penedo enorme que
tufões subtérreos
Expelem do Peloro
derrocado
Ou do horríssono bojo
do Etna em fúrias,
Cujas entranhas, que
abrasadas dentro
Até ali ferviam em
cachões de fogo,
Erguem-se agora de
tufões pungidas
Furibunda explosão
jogando aos ares,
Crestando largo
espaço que povoam
De mefítico cheiro e
negro fumo;
Tais os malditos pés
ali pousaram!
Seu imediato sócio
logo o segue,
Gloriando-se ambos
por se verem salvos
Do lago Estígio, como
deuses que eram,
Sem permissão do
onipotente Nume,
Mas pela própria
força recobrada.
[...]
Já toda a multidão as praias enche:
Nos macerados,
abatidos olhos
Inda mostram uns
longes de alegria,
Vendo que o chefe seu
não desespera,
E que eles mesmos não
estão perdidos
Dentro da própria
perdição imersos.
Em seu porte Satã
descobre indícios
De dúvida e receio,
mas ostenta
Sua soberba usual e,
em frase altiva,
De brio tendo a cor e
não a essência,
Com garbo ateia seu
valor mortiço,
E os temores dos
sócios afugenta.
Ordena logo que ao
guerreiro toque
De ruidosos clarins,
de feras tubas,
Seja erguido seu
válido estandarte:
Por jus antigo tão
soberbas honras
Azael pede, serafim
gigante,
Que pronto da hástia
refulgente solta,
Ao mavórcio clangor
do cavo bronze,
A bandeira imperial
que no ar subida,
Qual meteoro que os
ventos arrebatam,
Brilhou com o lustre
do ouro e ínclitas gemas,
Com troféus, com
seráficas divisas;
E ao mesmo passo o
exército levanta
Um aplauso estrondoso
que enche os ares,
Penetra o fundo
Inferno, e vai dar sustos
Ao Caos tenebroso, à
Noite antiga.
De: “Paraíso Perdido”
(Livro 1)
Referências:
Em Inglês
MILTON, John.
Paradise lost: excerpts from book 1. In: __________. The complete poems
of John Milton: written in english with introduction, notes and
illustrations. Edited by Charles W. Eliot LL. D. New York, NY: P. F. Collier
& Son, 1909. p. 91-92; 95-96; 103-104. (‘The Harvard Classics’; v. 4)
Em Português
MILTON, John. Paraíso
perdido: excertos do livro 1. Tradução de António José de Lima Leitão. In:
__________. Paraíso perdido. Tomo I: contendo os seis primeiros
cantos. Tradução de António José de Lima Leitão. Lisboa, PT: Typ. de J. M. R. e
Castro, 1840. p. 4-6; 11-12; 23-24.
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