Daquele que considero um dos melhores livros de Drummond, juntamente com
“Claro Enigma”, ou seja, “A Rosa do Povo”, vem o poema de despedida do ano de
2016, com o título exato para o momento: “Passagem do Ano”.
Espero que em 2017 o Brasil se redima dos enormes equívocos – para não
dizer outra coisa! – que promoveu neste ano ora findo, em especial contra a sua
frágil democracia, haja vista que um bando de canalhas – o candidato vencido
Aécio Neves aí incluso, mancomunado com o deputado rapina Eduardo Cunha! –, em
combinação com outros canalhas do judiciário – assim com letras minúsculas,
como merecido, porque o país não precisa de um político qual Gilmar Mendes em
seu corpo de magistrados (sem mencionar o outro lá de Curitiba!), idem a mídia
calhorda capitaneada por Globo, Folha de São Paulo, Estadão e Veja –, incineraram
54 milhões de votos hábeis a conduzir ao Palácio do Planalto uma eleita que, em
estatura moral, não se compara com nenhum dos que a depuseram.
“Triste pátria desimportante!” Fazer o quê? “A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia”, como afirma o poeta. Página que se vira... Morro e não vejo tudo! (rs). Que venha 2017. Um beijo para elas e um grande abraço para eles. E muita sorte para todos continuarmos juntos!
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Passagem do Ano
O último dia do ano
não é o último dia do
tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e
ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas,
rasgarás papéis,
farás viagens e
tantas celebrações
de aniversário,
formatura, promoção, glória, doce morte
com sinfonia e coral,
que o tempo ficará
repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de
tudo.
Fica sempre uma
franja de vida
onde se sentam dois
homens.
Um homem e seu
contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua
memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se
Deus...
Recebe com
simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais
um ano.
Desejarias viver
sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu
avô também.
Em ti mesmo muita
coisa já expirou, outras espreitam
a morte,
mas estás vivo. Ainda
uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se
embriagar.
O recurso da dança e
do grito,
o recurso da bola
colorida,
o recurso de Kant e
da poesia,
todos eles... e
nenhum resolve.
Surge a manhã de um
novo ano.
As coisas estão
limpas, ordenadas.
O corpo gasto
renova-se em espuma.
Todos os sentidos
alerta funcionam.
A boca está comendo
vida.
A boca está entupida
de vida.
A vida escorre da
boca,
lambuza as mãos, a
calçada.
A vida é gorda,
oleosa, mortal, sub-reptícia.
Passagem do Ano
(Roos Schuring:
pintora holandesa)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Passagem
do ano. In: __________. A rosa do povo.
Prefácio de Affonso Romano de Sant’Anna. 44. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record,
2011. p. 46-47.
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