Bishop descreve um cenário em constante mutação e, por conseguinte, suas
palavras são contingentes, pois representam um instantâneo fugaz da aldeia de
pescadores por ela visitada, exposta à erosão contínua das águas do mar, como
também ao fluxo avassalador do tempo.
Óbvio está que o assunto principal do poema não é exatamente o Natal –
embora ele esteja presente por meio de “um milhão de árvores azuladas”, que se
confundem com suas próprias sombras –, mas, salvo engano, a transitoriedade do
conhecimento humano, histórico que é, segundo a poetisa. Desse modo, tem-se a
verdade, “fluida e fugidia”, “escura, salgada, límpida, [...] colhida na boca
fria e dura do mundo”.
J.A.R. – H.C.
(1911-1979)
At the Fishhouses
Although it is a cold evening,
down by one of the fishhouses
an old man sits netting,
his net, in the gloaming almost invisible,
a dark purple-brown,
and his shuttle worn and polished.
The air smells so strong of codfish
it makes one’s nose run and one’s eyes water.
The five fishhouses have steeply peaked roofs
and narrow, cleated gangplanks slant up
to storerooms in the gables
for the wheelbarrows to be pushed up and down on.
All is silver: the heavy surface of the sea,
swelling slowly as if considering spilling over,
is opaque, but the silver of the benches,
the lobster pots, and masts, scattered
among the wild jagged rocks,
is of an apparent translucence
like the small old buildings with an emerald moss
growing on their shoreward walls.
The big fish tubs are completely lined
with layers of beautiful herring scales
and the wheelbarrows are similarly plastered
with creamy iridescent coats of mail,
with small iridescent flies crawling on them.
Up on the little slope behind the houses,
set in the sparse bright sprinkle of grass,
is an ancient wooden capstan,
cracked, with two long bleached handles
and some melancholy stains, like dried blood,
where the ironwork has rusted.
The old man accepts a Lucky Strike.
He was a friend of my grandfather.
We talk of the decline in the population
and of codfish and herring
while he waits for a herring boat to come in.
There are sequins on his vest and on his thumb.
He has scraped the scales, the principal beauty,
from unnumbered fish with that black old knife,
the blade of which is almost worn away.
Down at the water’s edge, at the place
where they haul up the boats, up the long ramp
descending into the water, thin silver
tree trunks are laid horizontally
across the gray stones, down and down
at intervals of four or five feet.
Cold dark deep and absolutely clear,
element bearable to no mortal,
to fish and to seals... One seal particularly
I have seen here evening after evening.
He was curious about me. He was interested in
music;
like me a believer in total immersion,
so I used to sing him Baptist hymns.
I also sang “A Mighty Fortress Is Our God.”
He stood up in the water and regarded me
steadily, moving his head a little.
Then he would disappear, then suddenly emerge
almost in the same spot, with a sort of shrug
as if it were against his better judgment.
Cold dark deep and absolutely clear,
the clear gray icy water... Back, behind us,
the dignified tall firs begin.
Bluish, associating with their shadows,
a million Christmas trees stand
waiting for Christmas. The water seems
suspended
above the rounded gray and blue-gray stones.
I have seen it over and over, the same sea, the
same,
slightly, indifferently swinging above the stones,
icily free above the stones,
above the stones and then the world.
If you should dip your hand in,
your wrist would ache immediately,
your bones would begin to ache and your hand would
burn
as if the water were a transmutation of fire
that feeds on stones and burns with a dark gray
flame.
If you tasted it, it would first taste bitter,
then briny, then surely burn your tongue.
It is like what we imagine knowledge to be:
dark, salt, clear, moving, utterly free,
drawn from the cold hard mouth
of the world, derived from the rocky breasts
forever, flowing and drawn, and since
our knowledge is historical, flowing, and
flown.
Natal no Oceano
(Autor Desconhecido)
No Pesqueiro
Embora a tarde esteja
fria,
ao lado de um dos
armazéns
um velho conserta uma
rede,
sua rede, quase
invisível no lusco-fusco,
um tom arroxeado de
marrom,
com uma lançadeira
lisa e gasta.
É tão forte o cheiro
de bacalhau
que o nariz escorre e
os olhos lacrimejam.
Os cinco armazéns têm
telhados bem íngremes
com pranchas
estreitas que vão
até os depósitos nas
cumeeiras,
por onde sobem e
descem os carrinhos de mão.
Tudo é prateado: a
superfície pesada do mar,
inchando aos poucos,
como quem pensa em transbordar,
é opaca, mas o
prateado dos bancos,
os covos de lagostas,
e os mastros, espalhados
por entre as pedras
de bordas aguçadas,
é de uma translucidez
aparente
tal como os prédios,
pequenos e velhos, com musgo
verde-esmeralda nas
paredes voltadas para o mar.
Os tanques de peixes
são completamente cobertos
por camadas de belas
escamas de arenques,
e os carrinhos de mão
também ostentam
cotas de malha
cremosas, iridescentes,
onde pululam moscas
igualmente iridescentes.
Na pequena elevação
atrás dos prédios,
em meio a um ou outro
tufo de capim de um verde vivo,
há um vetusto
cabrestante de madeira,
rachado, com dois
longos cabos descorados
e umas manchas
melancólicas, como sangue seco,
deixadas pelas ferragens enferrujadas.
O velho aceita um
Lucky Strike.
Ele era amigo de meu
avô.
Falamos sobre o
declínio da população
e bacalhaus e
arenques
enquanto ele aguarda
chegar um barco de pesca de arenque.
Ele tem lantejoulas
no colete e no polegar.
Ele raspou as
escamas, o que há de mais belo,
de uma infinidade de
peixes com aquela velha faca preta,
cuja lâmina de tão
gasta já quase se acabou.
A beira do mar, lá
onde
ficam os barcos, na
rampa comprida
que desce até a água,
troncos de árvores
finos e prateados
repousam na horizontal
sobre as pedras
cinzentas, rampa abaixo,
com intervalos de um
metro e meio.
Fria e escura e funda
e absolutamente límpida,
elemento propício a
nenhum mortal,
peixes e focas... Uma
foca
em particular eu via
aqui todas as tardes.
Ela me olhava,
curiosa. Interessava-se por música;
tal como eu,
acreditava na imersão total,
e assim eu lhe
cantava hinos batistas.
Cantava também “Castelo
forte é o nosso Deus”.
Ela levantava-se na
água e me encarava
fixamente, balançando
a cabeça de leve.
Depois sumia, e
emergia de repente
quase no mesmo lugar,
meio que dando de ombros
como se soubesse que
não devia fazer aquilo.
Fria e escura e funda
e absolutamente límpida,
a água límpida e
cinzenta e gélida... Atrás de nós,
erguem-se os
pinheiros altos e dignos.
Azuladas,
confundindo-se com suas sombras,
um milhão de árvores
de Natal
aguardam a chegada do
Natal. A água parece suspensa
acima das pedras
redondas, cinza ou cinza-azuladas.
Já o vi tantas vezes,
o mesmo mar, o mesmo,
balançando-se de
leve, indiferente, sobre as pedras,
gélido e livre sobre
as pedras,
sobre as pedras e
então o mundo.
Se você mergulhasse a
mão,
o pulso doeria
imediatamente,
os ossos começariam a
doer e a mão a arder
como se a água fosse
fogo transmudado,
um fogo que arde nas
pedras, com uma chama cinza-escura.
Se você a provasse, o
sabor seria primeiro amargo,
depois salgado,
depois certamente lhe queimaria a língua.
É assim que
imaginamos a verdade:
escura, salgada,
límpida, movente, totalmente livre,
colhida na boca fria
e dura
do mundo, derivada
dos peitos pétreos
para sempre, fluindo
e colhida, e como
nosso saber é
histórico, fluida e fugidia.
Referência:
BISHOP, Elizabeth. At the fishhouses / No pesqueiro. Tradução de Paulo
Henriques Britto. In: __________. Poemas
escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de
Paulo Henriques Britto. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das
Letras, 2012. Em inglês: p. 182, 184 e 186; em português: p. 183, 185 e 187.
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