Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 24 de dezembro de 2016

Augusto Frederico Schmidt - O Natal do outro lado

O poeta nos fala de um “velho doido” que se encontra do outro lado do Atlântico, em Londres, muito provavelmente em Park Lane, passando ali a temporada de Natal, não exatamente triste, embora sozinho, bebericando suas doses de uísque.

Batem os sinos, múltiplos, numerosos, justo na hora da redenção de todos, inclusive dos que bebem solitariamente. Depois se aprofunda o silêncio, e sob o olhar do poeta, em sua imprecisa linguagem de ser vivente, enraíza-se a tristeza ao redor do visitante, tão semelhante à hipotética alegria que sente o amigo.

J.A.R. – H.C.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

O Natal do outro lado

Nesta noite de Natal,
Não poderei telefonar-te sequer.
Estás longe, mas não sei onde...
Talvez em Nova York ou em Londres;
Parece-me mais certo
Em Londres – em Park Lane.

Diante de ti há um copo de uísque.
Bebes devagar como um namorado do fundo do mar.
E olhas, pela vidraça, a grande cidade coberta
de frio.
Não podes, velho doido, dormir;
Nem tens outra companhia senão as tuas
lembranças,
As lembranças da terra quente onde nasceste.
Dos teus olhos pingam lágrimas
redondas,
Mas não estás triste.
Choras porque ficaste de repente sozinho,
Perdido e tranquilo, bebendo,
Na grande cidade onde a solidão é sempre
enorme.

Choras de alegria, enquanto os sinos moem a bruma.
Sinos de Natal que só tu ouves,
Sinos de cristal, sinos de bronze,
Sinos de papel, sinos de plumas,
Sinos curtidos de ferro, sinos duros,
Sinos lânguidos
Cujos sons múltiplos e numerosos
Parecem subir do teu ser submerso nas águas
do uísque
E não descer das torres e dos campanários.
Sinos que se movem devagar como asas de pássaros
na névoa,
Ou que palpitam excitados como pupilas de cego.
Ouves os sinos e te sentes feliz
Porque chegou a hora da paz,
A hora da redenção de todos, inclusive dos que
bebem
E estão sós.

Do ponto em que te colocas,
Além das massas noturnas,
Podes contemplar, também, algumas janelas
iluminadas
E distinguir mesmo os teus vizinhos em Park Lane
Que festejam, nos seus lares,
A chegada a este mundo do Menino Deus.
De relance, vês passar a mulher ruiva
Que desejaste em vão e cuja mão nívea
Acaba de acender, do outro lado da rua,
A luz de uma lâmpada leitosa.
Mas estás aplacado e não queres mais amor.
Na verdade te sentes feliz;
Ninguém está mais contente do que tu.
O teu copo se encheu misteriosamente de novo.
Entes invisíveis foram buscar gelo
E derramaram o líquido amarelo no cristal fosco.
Na tua lareira crepitam achas de lenha.
Não queres mais do que esse aconchego
E do que esse bom silêncio de noite de Natal.

Sabes que estás isolado, sem caminho de volta,
E que não foi só a neve que, caindo do alto,
Ergueu um muro em torno de tua casa.
Sabes que há uma grande distância
Entre a tua condição de ser vivo
E a nossa de fantasmas,
que chegam de repente
E fogem da tua lembrança.
Vejo-te, porém, como se estivesses
a meu lado.
Tuas mãos afagam não sei o quê;
Não posso adivinhar se são cachos de crianças,
Ou os corpos das mulheres
que te atormentaram,
E hoje são pálidas imagens.

Estás numa grande cidade, mas ninguém caminha
nas ruas.
Vives, o teu coração bate,
Mas quem te sabe presente neste mundo,
A não ser quem escreve estas linhas?
Estás acordado,
Esperando a chegada da aurora desbotada.
Mas, súbito, fitas a porta de entrada do teu
aposento,
Onde alguém acaba de bater.
Espreitas um instante, mas te convences de que a
mão desconhecida
Não voltará a chamar-te,
O silêncio se estende de novo
E no silêncio vais mergulhando devagar
A tua alegria tão semelhante ao que chamamos,
Na nossa imprecisa linguagem de vivos,
de tristeza.

Em: “Aurora Lívida” (1958)

Neve Durante a Época Natalina
(Sera Knight: artista turca)

Referência:

SCHMIDT, Augusto Frederico. O Natal do outro lado. In: __________. Nova antologia poética. Rio de Janeiro, GB: Editora do Autor, 1964. p. 156-158.


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