O poeta nos fala de um “velho doido” que se encontra do outro lado do
Atlântico, em Londres, muito provavelmente em Park Lane, passando ali a
temporada de Natal, não exatamente triste, embora sozinho, bebericando suas
doses de uísque.
Batem os sinos, múltiplos, numerosos, justo na hora da redenção de
todos, inclusive dos que bebem solitariamente. Depois se aprofunda o silêncio, e
sob o olhar do poeta, em sua imprecisa linguagem de ser vivente, enraíza-se a
tristeza ao redor do visitante, tão semelhante à hipotética alegria que sente o
amigo.
J.A.R. – H.C.
Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)
O Natal do outro lado
Nesta noite de Natal,
Não poderei
telefonar-te sequer.
Estás longe, mas não
sei onde...
Talvez em Nova York
ou em Londres;
Parece-me mais certo
Em Londres – em Park
Lane.
Diante de ti há um
copo de uísque.
Bebes devagar como um
namorado do fundo do mar.
E olhas, pela
vidraça, a grande cidade coberta
de frio.
Não podes, velho
doido, dormir;
Nem tens outra
companhia senão as tuas
lembranças,
As lembranças da
terra quente onde nasceste.
Dos teus olhos pingam
lágrimas
redondas,
Mas não estás triste.
Choras porque ficaste
de repente sozinho,
Perdido e tranquilo,
bebendo,
Na grande cidade onde
a solidão é sempre
enorme.
Choras de alegria,
enquanto os sinos moem a bruma.
Sinos de Natal que só
tu ouves,
Sinos de cristal,
sinos de bronze,
Sinos de papel, sinos
de plumas,
Sinos curtidos de
ferro, sinos duros,
Sinos lânguidos
Cujos sons múltiplos
e numerosos
Parecem subir do teu
ser submerso nas águas
do uísque
E não descer das
torres e dos campanários.
Sinos que se movem
devagar como asas de pássaros
na névoa,
Ou que palpitam
excitados como pupilas de cego.
Ouves os sinos e te
sentes feliz
Porque chegou a hora
da paz,
A hora da redenção de
todos, inclusive dos que
bebem
E estão sós.
Do ponto em que te
colocas,
Além das massas
noturnas,
Podes contemplar,
também, algumas janelas
iluminadas
E distinguir mesmo os
teus vizinhos em Park Lane
Que festejam, nos
seus lares,
A chegada a este
mundo do Menino Deus.
De relance, vês
passar a mulher ruiva
Que desejaste em vão
e cuja mão nívea
Acaba de acender, do
outro lado da rua,
A luz de uma lâmpada
leitosa.
Mas estás aplacado e
não queres mais amor.
Na verdade te sentes
feliz;
Ninguém está mais
contente do que tu.
O teu copo se encheu
misteriosamente de novo.
Entes invisíveis
foram buscar gelo
E derramaram o líquido
amarelo no cristal fosco.
Na tua lareira
crepitam achas de lenha.
Não queres mais do
que esse aconchego
E do que esse bom
silêncio de noite de Natal.
Sabes que estás
isolado, sem caminho de volta,
E que não foi só a
neve que, caindo do alto,
Ergueu um muro em
torno de tua casa.
Sabes que há uma
grande distância
Entre a tua condição
de ser vivo
E a nossa de
fantasmas,
que chegam de repente
E fogem da tua
lembrança.
Vejo-te, porém, como
se estivesses
a meu lado.
Tuas mãos afagam não
sei o quê;
Não posso adivinhar
se são cachos de crianças,
Ou os corpos das
mulheres
que te atormentaram,
E hoje são pálidas
imagens.
Estás numa grande
cidade, mas ninguém caminha
nas ruas.
Vives, o teu coração
bate,
Mas quem te sabe
presente neste mundo,
A não ser quem
escreve estas linhas?
Estás acordado,
Esperando a chegada
da aurora desbotada.
Mas, súbito, fitas a
porta de entrada do teu
aposento,
Onde alguém acaba de
bater.
Espreitas um
instante, mas te convences de que a
mão desconhecida
Não voltará a
chamar-te,
O silêncio se estende
de novo
E no silêncio vais
mergulhando devagar
A tua alegria tão
semelhante ao que chamamos,
Na nossa imprecisa
linguagem de vivos,
de tristeza.
Em: “Aurora Lívida” (1958)
Neve Durante a Época Natalina
(Sera Knight: artista
turca)
Referência:
SCHMIDT, Augusto Frederico. O Natal do
outro lado. In: __________. Nova
antologia poética. Rio de Janeiro, GB: Editora do Autor, 1964. p. 156-158.
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