O poeta se compraz em conceber noutros termos, menos descritivos e mais
poéticos – não exatamente semelhantes, portanto, aos registrados nas Escrituras
–, a cena em que o arcanjo Gabriel teria anunciado a Maria que ela geraria o
Senhor, ou melhor, Jesus Cristo.
Salvado vislumbra Maria como a “nobre filha do seu próprio filho”, pois,
como imagino, sendo Cristo a fonte de vida, essência mesma da divindade, Maria seria,
por conseguinte, criação que dele dimana. Afinal, o que significaria uma asserção
como: “Eu lhes afirmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou!”? (João 8:58). Daí se
justifica o inspirado corolário deduzido pelo poeta, outorgado à elocução do
arcanjo: “eis-me perante a Vida anunciando a Vida!”.
J.A.R. – H.C.
Antônio Salvado
(n. 1936)
Anunciação
Põe o teu véu: quero
falar contigo.
Eis-me perante ti,
ainda carregado
da saudade dos anjos
meus iguais.
Perde esse espanto em
tua face meiga:
escuta. É grande o
peso das palavras
que a minha boca tem
para dizer-te.
Foste a escolhida, ó
livre de pecar,
foste a eleita, a
folha que não cai
e todos os outonos
atravessa pura.
Tu és a flor suave da
beleza,
a esperança no
futuro, a fonte, o mar...
O Senhor é contigo, ó
bem aventurada:
não temas pois meus
lábios, ó pacífica.
A minha voz não tem
essa evidência
da claridade em tua
face virgem
que, perturbada, ouve
o pensamento:
eu estou cansado; o
sofrimento é teu...
Em verdade, o caminho
é só de quem
o faz: venho de
longe, indefinido, incerto,
mas tu permaneceste
em todo o sempre.
Serás a nobre filha
de teu filho,
a solidão vencida, o
amor do próximo:
no teu ventre de luz
começa o mundo,
nas tuas mãos a
benção da justiça.
Porque era tempo que
a bondade fosse,
porque era tempo que
reinasse a paz,
porque era tempo que
o amor surgisse,
eis-me perante ti,
anunciando o dia,
eis-me perante a Vida
anunciando a Vida!
Em: “Cicatriz” (1965)
Anunciação
(Charlotte E. Babb: pintora
inglesa)
Referência:
SALVADO, António. Anunciação. In:
__________. Obra I: 1955-1975.
Coimbra, PT: A Mar Arte, 1997. p. 126.
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