Um poema que veio assim de forma “tão caudalosa” ao poeta, saturado de
estados oníricos, meio ao estilo nietzschiano do Zaratustra, mas certamente o
canto de anunciação do fim do homem – ou dos homens – que ele foi.
Ao mesmo tempo, vislumbra-se um estado de natalidade para os tempos vindouros
que os olhos do poeta hão de contemplar: outra será a sua história e outro será
o seu nome a calcinar no ouvido, seja pelo devir cósmico ilimitado, seja por
força e graça do poder avassalador do próprio poeta.
J.A.R. – H.C.
Afonso Félix de Sousa
(1925-2002)
Cântico da Anunciação
Vozes não mais de
homens. Ventos unindo a terra e o céu
num só gemido, sons
imemoriais da fonte
onde a dor germina e
choram bocas invisíveis.
Sem degraus, cercada
pelos abismos que dentro de mim
se formaram, a colina
a sustentar o santuário
de quanto amei e é
morto. E foi em meu sangue, no espesso
mar da carne os instantes
que vivi mais puros
acordaram ilhas,
maravilhas ao sol e à poesia.
Em quatro direções, o
vento. Em quatro estações,
o tempo. E eu – preso
aos rochedos, e eu – ébrio do nunca
ao meu alcance
e escravo de irreais
estrelas, a ouvir e repetindo
ressonâncias de almas
partidas em espumas.
Com a força do sangue
tocasse eu
a presença redentora
dos anjos,
a em pedras, frutos
da eternidade das coisas,
se converteriam. Tão
pobre, e ser divino.
Tão forte, e ser o
desespero de meus pais, o pranto
de meus filhos, o
primeiro e o último poeta.
Tão frágil! pois era
eu a substância de argila e lágrima
com que os deuses
modelavam um outro deus
– e incompleto o
abandonaram.
Do sonho não se
salvaram minhas asas, e é tão longe
o além, e é tão alto
o amor! Flores – bem que as colhi –
mas ao amanhecer se
foram em saudades
que ainda fecundam
espinhos no chão, no corpo.
Palavras que me
ensinaram, pensamentos
a se estenderem por
meu coração, onde o amor arde
em túmulos.
Que mais dizer? Ser
alguém a regressar
do mergulho no
pungente e sanguíneo oceano
e tudo ter ouvido dos
cavalos da loucura
e do desejo. E nada
mais cantar, que muito dói
a lâmina do verso.
Olho: a sufocar o canto dos pássaros
sou eu a voz da
carne, os gestos com raízes no lodo.
Mas – vejo – sou eu
também o pássaro
frustrado no seu
canto.
Não fora minha vida.
Ah, não fora a vida
mar sem margens e sem
fundo, e eu incerto veleiro
batido por dois
ventos. Deus profanado
a projetar nos lagos
do amor a sombra do vencido,
e a imagem, sob a
luz, já não recorda o anjo
nem o menino. Da
pedra que já fui sou a exilada alma,
de mim nasceram
árvores e os rios me banhavam e
os ventos com falas
de irmã
choravam-me o tédio
da paisagem humilde e única.
Disperso em sons da
flauta, chorei no peito
de errantes pastores.
E agora,
que acordei do sono
de mil séculos;
e agora,
que velho aqui
cheguei, mutilado em guerras
a que não fui, música
ao meio partida pelo silêncio;
e agora,
como completar-me?
Buscar-te, céu
impassível. De ti e do esquecimento
cai a chuva, e entre
tantas palavras
em meu segredo, mudo,
me segrego.
E quantas vezes,
Poesia,
te encontrei e foste
amor e foste sentimento e foste
perdição em rastos de
anjo e de serpente!
E quantas vezes
me ergui erguendo as
inúteis asas que acordaram do sonho
na antevisão de teus
domínios, no além
que minhas mãos de
espera e carne não atingem!
Onde, deuses ou vazio
imponderável, que reinais
além da mais longe
estrela, onde o impossível
que criei, para que
depois me criasse?
Filha, mãe, esposa –
bendito fruto do ventre
do meu desamparo de
cego sem árvores nem lágrimas.
Desceste, imagem
querida, mas não podia eu
decifrar o doce
enigma a cintilar entre espinhos
e era surdo meu
coração à música das formas.
Chegaste – tão bem
caberia o nebuloso corpo
entre meu corpo e a
ilha de meu exílio, mas se dormes
passiva ao sonho meu,
também pastoreias nuvens
jamais tocadas pelo
segredo dos pássaros.
Sombras de minha alma
que se salvou na perdição,
cristais sem brilho
do amor, à essência retornai.
A meu lado pousasses,
forma ausente, como na tarde
um barco
singrando o
pensamento. E ai, olhar de criança,
mão de mãe nos meus
cabelos – e
amar não poderia.
Será o demônio a
pulsar no âmago das coisas,
deus de sede
invencível, ou o pungitivo sono
de alguém que não
nasceu?
Palpitante e dolorosa
matéria, rio amargo
a escorrer nas horas
mais doces. Em vão espumas do azul
semeio no coração; de
novo ao teu apelo, ó carne,
se erguerá de mim
quem sou, e serei o noturno, o
bêbedo, o perdido.
Sou eu – e aqui vim,
pobre de mim, ser
prisioneiro do meu íntimo.
Buscar-me em carne e
poesia, e em meus vestígios lançar,
caçador no pântano,
os violentos cães do instinto.
Ah, eu
outro sono habitei,
uma treva que não essa
conheci.
Lembrança alguma
palpitasse, nenhum relógio
marcasse as horas e
as janelas do tempo a despedir-se.
Ser teu, plenitude
imensa, ao mundo misturar-me,
ser árvore entre
árvores, mar respondendo ao mar, poesia
no meu canto – e
entanto ser eu mesmo.
No corpo que viesse
recolher a alma e com a alma
recompor o corpo e
nele morrer para depois nascer.
Nascer, outro nascer –
e ser eu mesmo.
No indevassável,
cantando a infância,
sem possibilidade de
retorno.
Escuto. Sou eu
chorando, sou eu no ventre de Eva
chorando. Procuro.
Que dor! e atravessei os séculos.
E em vão as idades
tateio, de todas as paredes
escorre o mesmo rio
oleoso que me inunda o peito
de meus próprios
lamentos.
Mas vejo.
Não anjo ofuscando
todas as possíveis luzes. Vejo.
Estrela, não. Quão
fundamente vejo! Não uma luz,
mas vejo. Abram-se as
portas que me trancaram
dentro de mim.
Abram-se os túmulos, e sairei entoando
o canto que há de
acordar o dia sem crepúsculo.
Não o desenhar de um
corpo, não a esperada
que na praia do amor
espera por meu corpo. Não flores
que tarde viessem
colorir as histórias que vos contei
e eram a minha
história. Ah, fosse Deus, ante as cortinas
que encobrem o que é
mais negro em mim, a chorar
o que não choro.
Tão claramente vejo,
que as palavras resvalam
num deserto súbito.
Fossem os homens – enfim apagadas
as linhas e as
montanhas – dançando na planície irmã...
Que belo, enfim
descubro, os olhos que de anjo foram
e foram
de demônio. Com eles
vejo, com eles me vejo, e tão
definitivo! Outra
será minha história. Outro, meu nome
a calcinar no olvido.
Brilha, visão amiga.
Devastadoramente
brilha, fumo do que serei, até que
incendeie
o sol, e as estrelas
à luz mais forte caiam. Até que se destrua
aquele que fui eu,
aqueles que foram eu
– e a tudo eu
destrua.
A Anunciação
(Charles François
Poerson: pintor francês)
Referência:
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