Há neste poema de João Cabral muito de sinistro, mesmo que a pergunta
que nele desponta seja atribuída a um terceiro, que não o detentor da própria
voz poética: “Por que não um tiro de revólver ou a sala subitamente às
escuras?”.
No fundo, o poeta se encontra imerso num processo de transformação catártico
e, o que é pior, julga não haver meios de agir diretamente sobre os incômodos
que o afligem, pois estes ocorrem sem o seu consentimento.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
Poema Deserto
Todas as
transformações
todos os imprevistos
se davam sem o meu
consentimento.
Todos os atentados
eram longe de minha
rua.
Nem mesmo pelo
telefone
me jogavam uma bomba.
Alguém multiplicava
alguém tirava retratos:
nunca seria dentro de
meu quarto
onde nenhuma
evidência era provável.
Havia também alguém
que perguntava:
Por que não um tiro
de revólver
ou a sala subitamente
às escuras?
Eu me anulo me
suicido,
percorro longas
distâncias inalteradas,
te evito te executo
a cada momento e em
cada esquina.
Desespero
(Frank Holl: pintor
inglês)
Referência:
MELO NETO, João Cabral. Poema deserto. In:
KOPKE, Carlos Burlamarqui. Antologia da
poesia brasileira moderna: 1922-1947. São Paulo, SP: Clube de Poesia de São
Paulo, 1953. p. 211.
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