Se o poeta de ontem, Iverson Carneiro, não foi capaz de externar (estou
brincando, pois para mim é óbvio que a questão foi apenas de contenção do
querer), em seu poema, qualquer ideia de luxúria que não se limitasse a esse
vocábulo, tal não ocorre na obra de João de Jesus Paes Loureiro, embora não
especificamente no poema que ilustra esta postagem.
Explico-me: quando, lá pelo final dos anos 80, tive contato com o seu
premiado livro de poesias “Altar em Chamas” [a alusão é clara, como diria o
Arnaldo!, pois se reporta à Amazônia sendo devastada pela exploração de suas
madeiras e outras riquezas], sinceramente, leitor, a impressão visual indelével
que se fixou em minha mente foi a de um rio caudaloso, espumoso, metaforizado
em esperma, a gerar, prodigamente, os elementos que permitem à vida se manter
em contínuo fluxo. E lá há, por extensão, magnânimos registros a tudo o que é
da terra: água, muita água, chuvas, bairros antigos de Belém, lendas, peixes.
Mas, no poema que ora recolhemos, Loureiro, expressando-se de forma
regional, consegue ser ao mesmo tempo universal em suas conexões de espaço e
tempo. Digo melhor: é indisfarçável o modo como o poeta paraense emula o padrão
e a musicalidade das quadras de Fernando Pessoa. Você pode confirmar,
internauta, recitando o poema “Autopsicografia”,
do autor lusitano e, depois, declamando as estrofes abaixo de Loureiro! Os
ritmos de ambas as criações não se parecem?!
J.A.R. – H.C.
João de Jesus Paes Loureiro
(SAVARY, 2001, p.
219)
Poeta e professor de estética no Centro
de Letras, Artes e Comunicação da UFPA, e de Educação Artística na Escola
Técnica Federal. Mestre em Teoria Literária e Semiologia, tendo feito o curso
de mestrado na Unicamp, SP. Expôs na 10ª Bienal Internacional de Artes
Plásticas de São Paulo poemas visuais, em trabalho de parceria com o arquiteto
Paulo Chaves Fernandes. Participou, com poema-objeto, da mostra “A Vanguarda
Visual Brasileira – 50 Anos Depois da Semana de Arte Moderna”, organizada por
Roberto Pontual, para a Galeria Collectio/SP, com inclusão no Dicionário de Artes Plásticas do Brasil.
Premiado pelo Instituto Nacional do
Teatro (1975/76) com as peças Ilha da Ira
e A Procissão do Sayré. Em 1984,
recebeu o prêmio nacional de melhor livro de poesia do ano com Altar em Chamas pela APCA. Tem realizado
recitais e atividades de poesia em várias cidades e países: Belém do Pará,
Brasília, Porto Alegre, Canela, Gramado, Bogotá e Cartagena (na Colômbia); L’Áquila,
(na Itália); Frankfurt, Hamburgo, Berlim e Munique (na Alemanha).
Algumas de suas obras
estão traduzidas na Alemanha, China, EUA, Itália e Japão. Sua obra vem sendo
estudada em universidades da França, EUA, Alemanha, pelo alto nível poético e
pela importância universal que vem conferindo à temática amazônica. Situando o
drama do homem no papel essencial entre a moldura da paisagem amazônica, João
de Jesus provoca o ultrapassamento das circunstâncias pelo sentido perene de
sua poesia. No balanço feito entre as décadas de 80 e 90, a APCA o inclui como
um dos dez mais significativos poetas da década.
João de Jesus Paes Loureiro
(n. 1939)
VIII
A vela leva a canoa.
A canoa leva a vela.
É como ave que voa
nas penas que voam
nela.
A canoa que é de vela
sem a vela não
navega,
pois cada coisa
precisa
daquilo com que se
nega.
A vela salva a canoa
da morte, como a
poesia
que enfuna as almas
da língua
livrando-a da
calmaria.
Cada coisa tem a
outra
coisa de seu
complemento.
A vela sem a canoa
é o nada solto no
vento.
IX
O homem conduz o
sonho.
O sonho conduz o
homem,
no rio que dá noutro
rio
que dá noutros rios,
que somem
no rio a sumir no
rio,
que passa em seu próprio
nome,
no qual o homem
navega
enquanto navega o
homem.
Palavra que acende
lâmpadas
no rio do sono, o
sonho
leva em suas águas
quem sonha
que águas o levam.
Estranho
encanto do ser, que
pensa
que sonha, quando é
sonhado...
Como quem olha pro
rio
mas, pelo rio, vê-se
olhado.
Ver-o-Peso
(Olivar Cunha: pintor
amapaense)
Referência:
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Excertos
de poema VIII e IX. In: SAVARY, Olga (Seleção e Notas). Poesia do Grão-Pará. Rio de Janeiro, RJ: Graphia Editorial, 2001.
p. 221-222.
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