Naquele que considero um dos mais belos poemas brasileiros do século
passado, o alagoano Jorge de Lima discorre ao modo de uma prédica, como se
recitasse um sermão para os seus interlocutores, a quem pede que se acomodem
sentados para ouvi-lo.
Mas o que se oferece aos presentes, além disso, não é um pão que se multiplica para
poder saciar a fome das multidões, mas poesia, esse modo particular de ver o
mundo, cujo conteúdo pode derivar tanto do belo quanto do seu oposto, tanto do
material quanto do intangível, ou como antepõe o próprio poeta, tanto do doce
mel silvestre, quanto do sal dos mares. Em suma, quer dos prazeres quer dos
padecimentos da vida!
J.A.R. – H.C.
Jorge de Lima
(1893-1953)
Distribuição da Poesia
Mel silvestre tirei
das plantas,
sal tirei das águas,
luz tirei do céu.
Escutai meus irmãos:
poesia tirei de tudo
para oferecer ao
Senhor.
Não tirei ouro da
terra
nem sangue de meus
irmãos.
Estalajadeiros não me
incomodeis.
Bufarinheiros e
banqueiros
sei fabricar
distâncias
para vos recuar.
A vida está
malograda,
creio nas mágicas de
Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e
voltarem.
Vi os infelizes irem
e voltarem.
Vi homens obesos
dentro do fogo.
Vi ziguezagues na
escuridão.
Capitão-mor, onde é o
Congo?
Onde é a ilha de São
Brandão?
Capitão-mor que noite
escura!
Uivam molossos na
escuridão.
Ó indesejáveis, qual
o país,
qual o país que
desejais?
Mel silvestre tirei
das plantas,
sal tirei das águas, luz
tirei do céu.
Só tenho poesia para
vos dar.
Abancai-vos meus
irmãos.
A Apanhadora de Flores
(John William Waterhouse: pintor inglês)
Referência:
LIMA, Jorge de. Distribuição da poesia.
In: __________. Melhores poemas de Jorge
de Lima. Seleção de Gilberto Mendonça Teles. 3. ed. São Paulo, SP: Global,
2006. p. 81-82. (Coleção ‘Melhores Poemas’)
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