Cenário: o poeta está em frente ao espelho, o mais sincero de todos os
seus amigos, que jamais deixará de evidenciar não apenas o que vai no semblante
daquele cuja estampa reproduz, senão também todos os seus disfarces,
fingimentos, simulações.
Cotejo: a ideia do poema muito se parece com o do carme “Retrato”, de
Cecília Meireles. Quão confiável e honesto é o retrato que paira em frente ao
espelho, do qual não se pode abstrair a passagem irreversível do tempo, esse
algoz silencioso! Marguerite Yourcenar o vê como um “grande escultor”. Mesmo
que a nosso contragosto, diríamos nós (rs)!
J.A.R. – H.C.
Cassiano Ricardo
Caricatura
(1895-1974)
A Imagem Oposta
Espelho, sub-reptício
espelho,
meu professor de
disfarce.
Quem poderá
disfarçar-se
sem recorrer ao seu
conselho?
É diante dele que
componho
não só a gravata, meu
enfeite,
mas o meu jeito de
rir, tristonho,
para que o mundo me
aceite.
Suspenso defronte à
janela,
falador, não obstante
mudo,
ele é o meu jornal
tagarela
que em segredo me
conta tudo.
Graças ao seu
préstimo avisto
tudo o que se passa
lá fora.
E vejo, sem jamais
ser visto,
a vida que se vai
embora...
Veja o amigo... (ah,
eu o compreendo)
o amigo que mais
considero.
Aquele que só é
sincero
por não saber que o
estou vendo.
Vênus em Frente ao Espelho
(Rubens: pintor
flamengo)
Referência:
RICARDO, Cassiano. A imagem oposta. In: PINTO, José Nêumanne (Sel.). Os cem melhores poetas brasileiros do
século. São Paulo, SP: Geração, 2001. p. 81-82.
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