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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Murilo Mendes - Poema Dialético

Sempre com aquele matiz metafísico, propositalmente elusivo, sobranceiramente evolutivo, a poesia de Murilo Mendes tem o dom de despertar em seus cativos leitores o amor incondicional pelo apuro da palavra grafada, fortaleza da mais espontânea beleza.

Mas longe de pensar que, por ser espontânea, tem concepção fácil: veja, internauta, a dinâmica do poema a seguir, dialético por definição, como se convergisse para um vórtice arrasador a trama da vida e da morte – que, no bojo da teoria, tem amparo no hegeliano tripé tese-antítese-síntese.

J.A.R. – H.C.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Poema Dialético

1

Todas as formas ainda se encontram em esboço,
Tudo vive em transformação:
Mas o universo marcha
Para a arquitetura perfeita.

Retiremos das árvores profanas
A vasta lira antiga:
Sua secreta música
Pertence ao ouvido e ao coração de todos.
Cada novo poeta que nasce
Acrescenta-lhe uma corda.

2

Uma vida iniciada há mil anos atrás
Pode ter seu complemento e plenitude
Numa outra vida que floresce agora.

Nada poderá se interromper
Sem quebrar a unidade do mundo.

Um germe foi criado no princípio
Para que se desdobre em planos múltiplos.
Nossos suspiros, nossos anseios, nossas dores
São gravados no campo do infinito
Pelo espírito sereníssimo que preside às gerações.

3

A muitos só lhes resta o inferno.
Que lhes coube na monstruosa partilha da vida
Senão um desespero sem nobreza, e a peste da alma.
Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores,
Nem assistiram à contínua anunciação
E ao contínuo parto das belas formas.
Nunca puderam ver a noite chegar sem elementos de terror,
Caminham conduzindo o castigo e a sombra de seus atos,
Comeram o pó e beberam o próprio suor,
Não se banharam no regato livre.

Entretanto, a transfiguração precede a morte.
Cada um deve assumi-la em carne e espírito
Para que a alegria seja completa e definitiva.

4

É necessário conhecer seu próprio abismo
E polir incessantemente o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída um dia à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita.
A aurora é coletiva.

Arachne ou Dialética
(Paolo Veronese: pintor italiano)

Referência:

MENDES, Murilo. Poema dialético. In: TORRES, Alexandre Pinheiro (Seleção, Introdução e Notas). Antologia da poesia brasileira: os modernistas. v. III. Porto, PT: Livraria Chardron de Lello & Irmão Editores, 1984. p. 730-731.

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