Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Cassiano Ricardo – O Gato e o Dicionário

Voltemos às veredas das emoções felinas, trazendo um caprichado poema de Cassiano Ricardo, poeta, ensaísta e jornalista paulista. Por meio dele, Ricardo nos faz ver que, nesta vida, vez por outra, nos contentamos com algo bastante distante daquilo que sonhamos ter ou ser, um eterno desejar carente de plenitude, como um gato que replica de forma miniaturizada a figura de um tigre.

Em suma: se não tenho força financeira para adquirir um lídimo Van Gogh, terei uma cópia na parede da minha sala. Isso faz-me lembrar “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, título de um conhecido ensaio do crítico judeu-alemão Walter Benjamin.    

J.A.R. – H.C.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

O Gato e o Dicionário

... tigre em miniature.
(Maurice Rollinat)


Um gato se aproxima. Está com fome.
Abandonado ao deus-dará da rua.
Daqui a pouco, uma roda que significa o universo em seu eixo, o esmagará.
Sem que nenhuma estrela ou flor se mude do lugar onde está.

Chamo-o para junto do meu corpo.
Aqueço-o com o meu sobretudo londrino.
Os seus olhos são verdes. São mais verdes
que os da mulher que o abandonou na rua
ao passar em seu carro, como uma sereia montada num peixe.

E como (dada a minha condição pedestre)
jamais poderia eu possuir um tigre de Bengala,
farei, deste gato mosqueado,
o meu tigre, que se conservou criança,
para enfeite do mundo, só dos homens.

Afinal, para a pequena floresta rotativa onde moro,
me basta este minúsculo tigre, ornamental.

Não posso ter um quadro de Van Gogh,
tenho uma cópia.
Não posso ter dois pintarroxos no ar voando
tenho um, na mão.
(Que é a infância senão a alegria de ter uma coisa por outra?)

Não tenho as coisas do bazar de Deus,
tenho um dicionário.
Não tenho a mulher que vi na última corrida do Jóquei,
tenho a sua fotografia.

(O segredo da vida não está em a gente
se contentar com uma coisa por outra?)
Em meu dicionário de objetos achados,
o gato é o meu tigre.

(Ah, este gato me dará sempre a ilusão de eu ser menino,
aqui,
ou caçador de tigres, na África).

(De: “A Difícil Manhã”) 


Referência:

RICARDO, Cassiano. O gato e o dicionário. In: LOANDA, Fernando Ferreira de (Org.). Antologia da moderna poesia brasileira. Rio de Janeiro: Orfeu, 1967. p. 129-130.
ö

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