Voltemos às veredas das emoções felinas, trazendo um caprichado poema de
Cassiano Ricardo, poeta, ensaísta e jornalista paulista. Por meio dele, Ricardo
nos faz ver que, nesta vida, vez por outra, nos contentamos com algo bastante distante
daquilo que sonhamos ter ou ser, um eterno desejar carente de plenitude, como
um gato que replica de forma miniaturizada a figura de um tigre.
Em suma: se não tenho força financeira para adquirir um lídimo Van Gogh,
terei uma cópia na parede da minha sala. Isso faz-me lembrar “A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica”, título de um conhecido ensaio do crítico judeu-alemão
Walter Benjamin.
J.A.R. – H.C.
Cassiano Ricardo
(1895-1974)
O Gato e o Dicionário
... tigre em miniature.
(Maurice Rollinat)
Um gato se aproxima.
Está com fome.
Abandonado ao
deus-dará da rua.
Daqui a pouco, uma
roda que significa o universo em seu eixo, o esmagará.
Sem que nenhuma
estrela ou flor se mude do lugar onde está.
Chamo-o para junto do
meu corpo.
Aqueço-o com o meu
sobretudo londrino.
Os seus olhos são
verdes. São mais verdes
que os da mulher que
o abandonou na rua
ao passar em seu
carro, como uma sereia montada num peixe.
E como (dada a minha
condição pedestre)
jamais poderia eu
possuir um tigre de Bengala,
farei, deste gato
mosqueado,
o meu tigre, que se
conservou criança,
para enfeite do
mundo, só dos homens.
Afinal, para a
pequena floresta rotativa onde moro,
me basta este
minúsculo tigre, ornamental.
Não posso ter um
quadro de Van Gogh,
tenho uma cópia.
Não posso ter dois
pintarroxos no ar voando
tenho um, na mão.
(Que é a infância
senão a alegria de ter uma coisa por outra?)
Não tenho as coisas
do bazar de Deus,
tenho um dicionário.
Não tenho a mulher
que vi na última corrida do Jóquei,
tenho a sua
fotografia.
(O segredo da vida
não está em a gente
se contentar com uma
coisa por outra?)
Em meu dicionário de
objetos achados,
o gato é o meu tigre.
(Ah, este gato me
dará sempre a ilusão de eu ser menino,
aqui,
ou caçador de tigres,
na África).
(De: “A Difícil Manhã”)
Referência:
RICARDO, Cassiano. O gato e o
dicionário. In: LOANDA, Fernando Ferreira de (Org.). Antologia da moderna poesia brasileira. Rio de Janeiro: Orfeu,
1967. p. 129-130.
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