Trago alguns excertos da obra “Morte em Veneza” (“Der Tod in Venedig”), escrita
por Thomas Mann ao final da primeira década do século passado, depois de haver visitado
a famosa pérola do Adriático.
Sem desmerecer a adaptação primorosa para o cinema, do italiano Luchino
Visconti, datada de 1971 – na qual o personagem Aschenbach, de fato, um
escritor, aparece como um músico, tal como Adrian Leverkühn em outra obra de
Mann, “Doutor Fausto” (“Doktor Faustus”) –, perscrutar a novela do autor alemão
permite-nos apreender todo um conjunto de elucubrações, melhor dizendo,
considerações filosóficas, que, literalmente, se perde nas tomadas para as
telas.
Observe-se, nas passagens a seguir, como o escritor extrai elementos da
teoria das ideias ou das formas de Platão, para apreender o sentido do belo
fora do mundo sensível, instância em que tudo se submete à degeneração pelo
desejo.
O enredo do livro, notoriamente, incorpora elementos ambivalentes sobre
o ponto de vista da sexualidade, pois o escritor-personagem, já viúvo, deixa-se
levar pela beleza de um jovem que se hospeda no mesmo hotel em que está
alojado: o polaco Tadzio. Algo que parece refletir a própria forma de ver as
coisas, por parte de Mann...
J.A.R. – H.C.
Tomas Mann
(1875-1955)
Morte em Veneza
(Excertos)
As observações e as
vivências do solitário calado são ao mesmo tempo mais difusas e intensas do que
as dos seres sociáveis, seus pensamentos, mais graves, mais fantasiosos e
sempre marcados por um laivo de tristeza. Imagens e impressões que facilmente
seriam esquecidas com um olhar, um sorriso, uma troca de opiniões, ocupam-no
mais do que o devido, aprofundam-se no silêncio, ganham significado,
transformam-se em vivência, aventura, sentimento. A solidão engendra o
original, o belo ousado e surpreendente, o poema. Mas engendra também o
inverso, o desmedido, o absurdo e o ilícito. (MANN, 2003, p. 32)
Mas na relva em suave
declive, onde se podia estar deitado mantendo a cabeça mais alta, dois homens
estavam estendidos, protegidos do calor do dia: um velho e um jovem; um feio, o
outro belo; a sabedoria junto à graça. E entre amabilidades e gracejos
espirituosamente sedutores, Sócrates instruía Fedro sobre o desejo e a virtude.
Falava-lhe da cálida emoção que surpreende o homem sensível quando seus olhos
se deparam com um símbolo da beleza eterna; falava-lhe dos desejos lúbricos do
ímpio e mau, que não pode conceber a beleza ao ver sua imagem e que e incapaz
de veneração; falava do temor sagrado que assalta um espírito nobre quando lhe
aparece um corpo divino, um corpo perfeito, de como ele então estremece e fica
fora de si, mal se atrevendo a olhar, venerando aquele que possui a beleza,
disposto mesmo a oferecer-lhe sacrifícios como a uma estátua divina, se não
temesse que o tomassem por louco. Pois a beleza, meu caro Fedro, e apenas ela,
é simultaneamente visível e enlevadora. Ela é – nota bem – a única forma ideal
que percebemos por meio dos sentidos e que nossos sentidos podem suportar. Ou o
que seria de nós se acaso o Divino, a Razão, a Virtude e a Verdade se
dispusessem a aparecer aos nossos sentidos? Não iríamos sucumbir consumidos
pela chama do amor, qual Sêmele outrora diante de Zeus? Assim, a beleza é o
caminho que conduz ao espírito o homem sensível apenas o caminho, um meio
apenas, pequeno Fedro... E então aquele astuto sedutor expôs o mais sutil, ou
seja, que o amante é mais divino que o amado, pois o deus está presente no
primeiro, mas não no outro talvez o pensamento mais terno e irônico que jamais
foi concebido, fonte de toda malícia e da mais secreta volúpia do desejo. (MANN,
2003, p. 58)
Certamente é bom que
o mundo conheça apenas a obra-prima, sem conhecer suas origens e as condições
de sua gênese, pois o conhecimento das fontes de onde flui a inspiração do
artista muitas vezes confundiria o público, o intimidaria, anulando assim os
efeitos da perfeição: Que horas estranhas! Que empenho estranhamente
desgastante! Que relação extraordinariamente fecunda entre o espírito e um
corpo! (MANN, 2003, p. 59-60)
“Pois a beleza,
Fedro, grava bem isso, apenas a beleza é simultaneamente divina e visível; ela
é, portanto, o caminho do sensível, ela é, meu pequeno Fedro, o caminho pelo
qual o artista alcança o espírito. Mas tu crês, meu querido, que aquele que se
encaminha ao espiritual pela via dos sentidos pode algum dia alcançar a
sabedoria e uma verdadeira dignidade viril? Ou antes acreditas (tu és livre
para decidir) que este é um caminho atraente, conquanto perigoso, na verdade um
caminho equívoco e pecaminoso que necessariamente conduz ao erro? Pois é
preciso que saiba que nós, poetas, não podemos percorrer o caminho da beleza
sem que Eros se interponha, arvorando-se em nosso guia; sim, ainda que sejamos,
a nosso modo, heróis e guerreiros disciplinados, somos como mulheres, pois a
paixão é nossa sublimação, e nosso anseio não pode deixar de ser amor – para
nossa satisfação e nossa vergonha. Vês agora que nós, poetas, não podemos ser
nem sábios nem dignos? Que fatalmente incorremos em erro, que fatalmente
permanecemos devassos e aventureiros do sentimento? A maestria de nosso estilo
é mentira e estupidez; nossa fama e respeitabilidade, uma farsa; a confiança
depositada em nós pela multidão, altamente ridícula; a educação do povo e da
juventude pela arte, um empreendimento temerário que devia ser proibido. Pois,
como pode servir de educador quem traz em si um pendor inato e incorrigível
para o abismo? Bem que gostaríamos de renegá-lo e adquirir dignidade, mas para
onde quer que nos voltemos, lá esta ele a nos atrair. É assim que renunciamos,
por exemplo, ao conhecimento analítico, pois o conhecimento, Fedro, não tem
dignidade nem rigor; ele e sábio, compreensivo e indulgente, não tem firmeza
nem forma; simpatiza com o abismo, ele é o abismo. A este rejeitamos, pois,
decididamente, e nossa única aspiração passa a ser então a beleza, o que quer
dizer simplicidade, grandeza, um novo rigor, a espontaneidade reconquistada e a
forma. Mas forma e espontaneidade, Fedro, levam à embriaguez e à cobiça,
arriscam levar um coração nobre a cometer um atentado atroz contra o
sentimento, atentado que sua própria exigência de austera beleza repudia como
infame – também elas conduzem ao abismo. Digo que elas nos conduzem, a nós
poetas, para o abismo, pois não conseguimos elevar-nos, mas apenas exceder-nos.
E agora eu me vou, Fedro. Quero que fiques aqui e só quando já não me avistares
mais, só então, parte também”. (MANN, 2003, p. 90-91)
Não há nada mais
estranho e melindroso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de
vista – que se encontram e se observam diariamente, ou mesmo a toda hora, sem
um cumprimento, sem uma palavra, forçadas a manter uma aparente indiferença de
desconhecidos, por imposição dos costumes, ou por capricho pessoal. Há entre
elas inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria de uma necessidade
insatisfeita, artificialmente reprimida, de travar conhecimento e comunicar-se,
e também, sobretudo, uma espécie de respeito carregado de tensão. Pois o ser
humano ama e respeita seu semelhante enquanto não tem condições de julgá-lo, e
o desejo é produto de um conhecimento imperfeito. (MANN, 2003, p. 63)
Morte em Veneza
(Luchino Visconti:
1971)
P.s.: Notem os cinéfilos o efeito
musical do adagietto da Sinfonia nº 5, de Gustav Mahler, sobre o andamento do
filme de Visconti, em linha com a sua cadência intimista e letárgica.
Referência:
MANN, Thomas. Morte em Veneza. Tradução de Eloísa Ferreira Araújo Silva. São Paulo:
Folha de São Paulo, 2003. (Biblioteca Folha, nº 18)
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