Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Thomas Mann - Morte em Veneza

Trago alguns excertos da obra “Morte em Veneza” (“Der Tod in Venedig”), escrita por Thomas Mann ao final da primeira década do século passado, depois de haver visitado a famosa pérola do Adriático.

Sem desmerecer a adaptação primorosa para o cinema, do italiano Luchino Visconti, datada de 1971 – na qual o personagem Aschenbach, de fato, um escritor, aparece como um músico, tal como Adrian Leverkühn em outra obra de Mann, “Doutor Fausto” (“Doktor Faustus”) –, perscrutar a novela do autor alemão permite-nos apreender todo um conjunto de elucubrações, melhor dizendo, considerações filosóficas, que, literalmente, se perde nas tomadas para as telas.

Observe-se, nas passagens a seguir, como o escritor extrai elementos da teoria das ideias ou das formas de Platão, para apreender o sentido do belo fora do mundo sensível, instância em que tudo se submete à degeneração pelo desejo.

O enredo do livro, notoriamente, incorpora elementos ambivalentes sobre o ponto de vista da sexualidade, pois o escritor-personagem, já viúvo, deixa-se levar pela beleza de um jovem que se hospeda no mesmo hotel em que está alojado: o polaco Tadzio. Algo que parece refletir a própria forma de ver as coisas, por parte de Mann...

J.A.R. – H.C.

Tomas Mann
(1875-1955) 

Morte em Veneza
(Excertos)

As observações e as vivências do solitário calado são ao mesmo tempo mais difusas e intensas do que as dos seres sociáveis, seus pensamentos, mais graves, mais fantasiosos e sempre marcados por um laivo de tristeza. Imagens e impressões que facilmente seriam esquecidas com um olhar, um sorriso, uma troca de opiniões, ocupam-no mais do que o devido, aprofundam-se no silêncio, ganham significado, transformam-se em vivência, aventura, sentimento. A solidão engendra o original, o belo ousado e surpreendente, o poema. Mas engendra também o inverso, o desmedido, o absurdo e o ilícito. (MANN, 2003, p. 32)

Mas na relva em suave declive, onde se podia estar deitado mantendo a cabeça mais alta, dois homens estavam estendidos, protegidos do calor do dia: um velho e um jovem; um feio, o outro belo; a sabedoria junto à graça. E entre amabilidades e gracejos espirituosamente sedutores, Sócrates instruía Fedro sobre o desejo e a virtude. Falava-lhe da cálida emoção que surpreende o homem sensível quando seus olhos se deparam com um símbolo da beleza eterna; falava-lhe dos desejos lúbricos do ímpio e mau, que não pode conceber a beleza ao ver sua imagem e que e incapaz de veneração; falava do temor sagrado que assalta um espírito nobre quando lhe aparece um corpo divino, um corpo perfeito, de como ele então estremece e fica fora de si, mal se atrevendo a olhar, venerando aquele que possui a beleza, disposto mesmo a oferecer-lhe sacrifícios como a uma estátua divina, se não temesse que o tomassem por louco. Pois a beleza, meu caro Fedro, e apenas ela, é simultaneamente visível e enlevadora. Ela é – nota bem – a única forma ideal que percebemos por meio dos sentidos e que nossos sentidos podem suportar. Ou o que seria de nós se acaso o Divino, a Razão, a Virtude e a Verdade se dispusessem a aparecer aos nossos sentidos? Não iríamos sucumbir consumidos pela chama do amor, qual Sêmele outrora diante de Zeus? Assim, a beleza é o caminho que conduz ao espírito o homem sensível apenas o caminho, um meio apenas, pequeno Fedro... E então aquele astuto sedutor expôs o mais sutil, ou seja, que o amante é mais divino que o amado, pois o deus está presente no primeiro, mas não no outro talvez o pensamento mais terno e irônico que jamais foi concebido, fonte de toda malícia e da mais secreta volúpia do desejo. (MANN, 2003, p. 58)

Certamente é bom que o mundo conheça apenas a obra-prima, sem conhecer suas origens e as condições de sua gênese, pois o conhecimento das fontes de onde flui a inspiração do artista muitas vezes confundiria o público, o intimidaria, anulando assim os efeitos da perfeição: Que horas estranhas! Que empenho estranhamente desgastante! Que relação extraordinariamente fecunda entre o espírito e um corpo! (MANN, 2003, p. 59-60)

“Pois a beleza, Fedro, grava bem isso, apenas a beleza é simultaneamente divina e visível; ela é, portanto, o caminho do sensível, ela é, meu pequeno Fedro, o caminho pelo qual o artista alcança o espírito. Mas tu crês, meu querido, que aquele que se encaminha ao espiritual pela via dos sentidos pode algum dia alcançar a sabedoria e uma verdadeira dignidade viril? Ou antes acreditas (tu és livre para decidir) que este é um caminho atraente, conquanto perigoso, na verdade um caminho equívoco e pecaminoso que necessariamente conduz ao erro? Pois é preciso que saiba que nós, poetas, não podemos percorrer o caminho da beleza sem que Eros se interponha, arvorando-se em nosso guia; sim, ainda que sejamos, a nosso modo, heróis e guerreiros disciplinados, somos como mulheres, pois a paixão é nossa sublimação, e nosso anseio não pode deixar de ser amor – para nossa satisfação e nossa vergonha. Vês agora que nós, poetas, não podemos ser nem sábios nem dignos? Que fatalmente incorremos em erro, que fatalmente permanecemos devassos e aventureiros do sentimento? A maestria de nosso estilo é mentira e estupidez; nossa fama e respeitabilidade, uma farsa; a confiança depositada em nós pela multidão, altamente ridícula; a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento temerário que devia ser proibido. Pois, como pode servir de educador quem traz em si um pendor inato e incorrigível para o abismo? Bem que gostaríamos de renegá-lo e adquirir dignidade, mas para onde quer que nos voltemos, lá esta ele a nos atrair. É assim que renunciamos, por exemplo, ao conhecimento analítico, pois o conhecimento, Fedro, não tem dignidade nem rigor; ele e sábio, compreensivo e indulgente, não tem firmeza nem forma; simpatiza com o abismo, ele é o abismo. A este rejeitamos, pois, decididamente, e nossa única aspiração passa a ser então a beleza, o que quer dizer simplicidade, grandeza, um novo rigor, a espontaneidade reconquistada e a forma. Mas forma e espontaneidade, Fedro, levam à embriaguez e à cobiça, arriscam levar um coração nobre a cometer um atentado atroz contra o sentimento, atentado que sua própria exigência de austera beleza repudia como infame – também elas conduzem ao abismo. Digo que elas nos conduzem, a nós poetas, para o abismo, pois não conseguimos elevar-nos, mas apenas exceder-nos. E agora eu me vou, Fedro. Quero que fiques aqui e só quando já não me avistares mais, só então, parte também”. (MANN, 2003, p. 90-91)

Não há nada mais estranho e melindroso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista – que se encontram e se observam diariamente, ou mesmo a toda hora, sem um cumprimento, sem uma palavra, forçadas a manter uma aparente indiferença de desconhecidos, por imposição dos costumes, ou por capricho pessoal. Há entre elas inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria de uma necessidade insatisfeita, artificialmente reprimida, de travar conhecimento e comunicar-se, e também, sobretudo, uma espécie de respeito carregado de tensão. Pois o ser humano ama e respeita seu semelhante enquanto não tem condições de julgá-lo, e o desejo é produto de um conhecimento imperfeito. (MANN, 2003, p. 63)

Morte em Veneza
(Luchino Visconti: 1971)

P.s.: Notem os cinéfilos o efeito musical do adagietto da Sinfonia nº 5, de Gustav Mahler, sobre o andamento do filme de Visconti, em linha com a sua cadência intimista e letárgica.

Referência:

MANN, Thomas. Morte em Veneza. Tradução de Eloísa Ferreira Araújo Silva. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003. (Biblioteca Folha, nº 18)

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