Num mundo em que os valores parecem ter saído dos trilhos, ter e possuir
coisas passou a veicular maior poder intrínseco do que ser alguém mais
cultivado, por exemplo.
Diga a um amigo para descrever-se e, muito provavelmente, o que há de
ser externado será um rol de coisas materiais que o interlocutor detém. O
possuir algo, como um automóvel ou uma mansão, quase manifesta identidade ontológica
com o seu detentor.
Esse tema não é novo, obviamente, no universo das ideias: para alguém
com os olhos já meio cansados pelo fluir das primaveras, certamente terá lido
ou pelo menos compulsado obras como “Ter ou Ser?”, do psicanalista judeu-alemão
Erich Fromm.
Tal é também o título do expressivo poema da poetisa guatemalteca Luz
Méndez de la Veja, que já esteve nestas paragens, com uma poesia intitulada “O Gato Negro”.
Note-se no poema ora postado a apreensão da mecânica do corpo, como se um
relógio de cordas fosse: temos que alimentá-lo para que execute suas
atribuições a contento. Uma abordagem bem funcionalista: “é isto um homem?”,
diria Primo Levi.
J.A.R. – H.C.
Luz Méndez de la Vega
(1919-2012)
Ser o Tener
Pienso.
Respiro.
Me muevo.
Como.
Defeco
y duermo.
Hago el arnor
(lease fornico).
Insulto.
Sonrío.
A veces lIoro
o doy un suspiro.
Conduzco mi automóvi1.
Subo y bajo
el ascensor de mi
piso.
Trabajo.
El cartero me Irae
correspondencia
con mi nombre y
apellidos.
Firmo cheques.
Me compro un pantalón
o un vestido.
Voy al cine o al
teatro.
Bailo y río.
Doy conferencias.
Escribo.
De cuando en cuando
sale mi retrato
en las hojas de los
diarios.
Hablo y me responden.
Me insultan.
¡Hasta me tratan con
respeto!
y me adjetivan
un titulo
universitario
o artistico.
Pero... yo,
¿soy yo?
o tengo simplemente
cosas
como este nombre y
apellidos
y este cuerpo
que día a día
hago saltar de la
cama
– a las ocho en punto
–
lavo,
perfumo,
visto
y
Ie doy cuerda...
Pintor na Estrada para Tarascon
(Vincent van Gogh:
1853-1890)
Ser ou Ter
Penso.
Respiro.
Me movo.
Como.
Defeco
e durmo.
Faço o amor
(leia-se fornico).
Insulto.
Sorrio.
Às vezes choro
ou dou um suspiro.
Conduzo meu automóvel.
Subo e desço
o elevador do meu
apartamento.
Trabalho.
O carteiro me traz
correspondência
com meu nome e
sobrenomes.
Firmo cheques.
Me compro uma calça
comprida
ou um vestido.
Vou ao cinema ou ao
teatro.
Danço e rio.
Dou conferências.
Escrevo.
De quando em quando
sai o meu retrato
nas folhas dos
jornais.
Falo e me respondem.
Me insultam.
Até me tratam com
respeito!
e me atribuem
um diploma
universitário
ou artístico.
Porém... eu,
sou eu?
ou tenho simplesmente
coisas
como este nome e
sobrenomes
e este corpo
que dia a dia
faço saltar da cama
– às oito em ponto –
lavo,
perfumo,
visto
e
lhe dou corda...
To Have or To Be?
(Erich Fromm)
Referência:
DE LA VEJA, Luz Méndez. Ser o tener.
In: TOLEDO, Aida; ACEVEDO, Anabella (Selección y Notas). Para conjurar el sueño: poetas guatemaltecas del siglo XX. Guatemala
(GT): Universidad Rafael Landívar, 1998. Abrapalabra 30. p. 23-24.
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