Num poema cujo tema diz respeito aos jesuítas, o poeta baiano Castro
Alves instila todo o seu ‘veneno’ contra os sacerdotes da Companhia de Jesus.
Chama-os ‘átilas da fé’, equiparando-os ao rei dos hunos, a varrer o mundo,
impondo-lhe o cristianismo. Noutra associação, qualifica-os com termos
antitéticos, a saber, ‘vândalos sublimes’. Noutra, ainda, inscreve-os num
bosquejo metafórico devastador: ‘batedores da matilha de Deus’.
Nesse contexto, transcrevendo um poema como tal em meu bloguinho,
certamente o Papa Francisco, um jesuíta, há de me excomungar. Ou melhor, ficará
com vontade de me esmurrar (rs).
Apesar disso, não deixarei de apresentá-lo em seguida, com a
grafia atualizada e devidamente acompanhado de um elucidário ao seu final, para
melhor compreensão de suas estrofes, extraídas das páginas de “Espumas
Flutuantes”, de 1870.
Mas, em vista de tanta descortesia, quais as razões de os jesuítas serem tão mal
apreciados pelo vate romântico da ‘Terra Brasilis’? Afinal, ninguém há de
depreciar o trabalho por aqui desenvolvido por jesuítas renomados, como os
padres José de Anchieta e Manuel da Nóbrega!
A julgar pelas concepções do Marquês de Pombal, enquanto secretário de
Dom José I, rei de Portugal, tratava-se de uma autêntica companhia, no sentido
econômico do termo, com o agravante de não carrear recursos para o erário luso.
Daí porque se decidiu expulsá-los de Portugal e de suas colônias, o Brasil aí
incluso.
Decerto, Pombal, que já havia sido diplomata em Londres, viu em terras
distantes os efeitos de uma revolução industrial em pleno desencadeamento,
passando então a sonhar, em seu torrão natal, com algo capaz de retirar o país
do longo trânsito de quase esterilidade econômica em que se encontrava.
Pombal muito tentou e, ao final da vida, ainda teve o dissabor de contar
com o desacato de Dona Maria I, a ‘Louca’, sucessora de Dom José I, que o
desterrou para muitas léguas do Paço Imperial. De se observar que Dona Maria I
é a mesma figura pública que, no Brasil, está em associação direta com
episódios da denominada ‘Inconfidência Mineira’.
E assim fomos tão longe, que quase perdemos de vista o mote inicial da
postagem: a Companhia de Jesus. Ah, a Companhia de Jesus! Criada pelo basco
Inácio de Loyola, em 1534, foi reconhecida pelo Papa Paulo III, em 1540. Em meio
a controvérsias e polêmicas, a Companhia foi suprimida por Clemente XIV, em
1773, e posteriormente restaurada pelo Papa Pio VI, em 1814.
Hoje, o total de seus membros mal atinge a escala dos vinte mil, embora
ainda sejam influentes, com sólida formação cultural e religiosa, estando ainda
presentes em várias partes do mundo, como nos EUA, onde mantêm a famosa ‘Loyola
University Chicago’. Aqui em Brasília (DF), fundaram em 1975 o CCB
– Centro Cultural de Brasília, no começo da avenida L2 Norte, Plano Piloto.
Tudo quanto até aqui comentado devidamente ponderado à contraluz,
poderia expressar opinião pessoal sobre o que extraio a cada vez que entro em
contato com um padre da ordem jesuítica, seja escutando suas prédicas, seja em
conversa direta: por trás de um saber muito bem concatenado em ideias e fatos,
se encontram palavras a expressar apoio preferencial sobre o secular, antes que
o puramente religioso ou o metafísico, como se queira; ou por outra, mais o
social que o pio. Por vezes, imagino que os jesuítas sejam menos radicais ao
abraçar os dogmas da Igreja, o que lhes permite transitar mais francamente num diálogo inter-religioso com outros credos, não sei bem ao
certo.
Agora um ponto final neste comento, para sugerir um filme
relacionado ao tema: ‘The Mission’ (‘A Missão’), direção de Roland Joffé, Palma
de Ouro em Cannes (1986), com Jeremy Irons, Robert de Niro e Liam Neeson. A
película retrata as dissensões durante as missões jesuíticas no sul do Brasil.
Menção particular à primorosa cena inicial, na qual o ator Jeremy Irons, como o
padre Gabriel, toca pífano próximo a uma das 275 quedas das Cataratas do Iguaçu.
J.A.R. – H.C.
Castro Alves
(1847-1871)
Jesuítas
(Século XVIII)
Ó mês frères, je viens vous apporter
mon Dieu,
Je viens vous apporter ma tête! (*)
(Les Châtiments)
Victor Hugo
Quando o vento da Fé
soprava Europa.
Como o tufão que
impele ao ar a troça
Das águias, que pousavam no alcantil;
Do zimbório de Roma –
a ventania
O bando dos Apóst’los
sacudia
Aos cerros do Brasil.
Tempos idos! Extintos
luzimentos!
O pó da catequese aos
quatro ventos
Revoava nos céus...
Floria após na Índia
ou na Tartária,
No Mississipi, no
Peru, na Arábia
Uma palmeira – Deus!
O navio maltês, do
Látio a vela,
A Lusa nau, as quinas
de Castela,
Do Holandês a galé
Lavavam sem saber ao
mundo inteiro
Os vândalos sublimes do cordeiro,
Os átilas da fé.
Onde ia aquela nau? –
Ao Oriente.
A outra? – Ao Pólo. A
outra? – Ao Ocidente.
Outra? – Ao Norte. Outra? – Ao Sul.
E o que buscava? A
foca além do pólo;
O âmbar, o cravo no
indiano solo.
Mulheres em Istambul.
Ouro – na Austrália;
pedras – em Misora!...
“Mentira! respondia
em voz canora
O filho de Jesus...
“Pescadores!... nós
vamos no mar fundo
Pescar almas p’ra o
Cristo em todo mundo,
Com um anzol – a cruz!”
Homens de ferro! Mal
na vaga fria
Colombo ou Gama um
trilho descobria
Do mar nos escarcéus,
Um padre atravessava
os equadores,
Dizendo: “Gênios!...
sois os batedores
Da matilha de Deus”.
Depois as solidões
surpresas viam
Esses homens inermes,
que surgiam
Pela primeira vez.
E a onça recuando s’esgueirava
Julgando o
crucifixo... alguma clava
Invencível talvez!
O martírio, o
deserto, o cardo, o espinho
A pedra, a serpe do
sertão manino,
A fome, o frio, a dor,
Os insetos, os rios,
as lianas,
Chuvas, miasmas,
setas e savanas,
Horror e mais horror...
Nada turbava aquelas
frontes calmas,
Nada curvava aquelas
grandes almas
Voltadas p’ra amplidão...
No entanto eles só
tinham na jornada
Por couraça – a
sotaina esfarrapada...
E uma cruz – por bordão.
Um dia a taba do Tupi selvagem
Tocava alarma...
embaixo da folhagem
Rangera estranho pé...
O caboclo da rede ao
chão saltava,
A seta ervada o arco
recurvava...
Estrugia o boré.
E o tacape brandindo,
a tribo fera
De um tigre ou de um
jaguar ficava à espera
Com gesto ameaçador...
Surgia então no meio
do terreiro
O padre calmo, santo,
sobranceiro,
O Piaga do amor.
Quantas vezes então
sobre a fogueira,
Aos estalos sombrios
da madeira,
Entre o fumo e a luz...
A voz do mártir
murmurava ungida:
“Irmãos! Eu vim
trazer-vos – minha vida...
Vim trazer-vos – Jesus!”
Grandes homens!
Apóstolos heroicos!...
Eles diziam mais do
que os estoicos:
“Dor – tu és um prazer!
Grelha – és um leito!
Brasa – és uma gema!
Cravo – és um cetro!
Chama – um diadema!
Ó morte – és o viver!”
Outras vezes no
eterno itinerário
O sol, que vira um
dia no Calvário
Do Cristo a santa cruz;
Enfiava de vir achar
nos Andes
A mesma cruz, abrindo
os braços grandes
Aos índios rubros, nus.
Eram eles que o verbo
do Messias
Pregavam desde o vale
às serranias,
Do Pólo ao Equador...
E o Niágara ia contar
aos mares...
E o Chimborazo
arremessava aos ares
O nome do Senhor!...
Elucidário:
(*) Ó meus irmãos,
trago-vos meu Deus, / Trago-vos minha cabeça! (Os Castigos).
Alcantil –
Despenhadeiro.
Zimbório – Parte
externa e superior da cúpula de grandes igrejas, como a de São Pedro, em Roma;
domo.
Maltês – Originário
da ilha de Malta.
Cerro – Colina pouco
elevada, outeiro.
Lácio – Referência à
Itália; no original do autor, Látio.
Castela – Referência
à Espanha.
Galé – Galera; forma
de embarcação antiga.
Misora – Cidade e
estado da Índia meridional.
Liana – Grande
trepadeira, cipoal.
Manino – Estéril,
infecundo.
Boré – Trombeta de
taquara empregada pelos indígenas em suas danças.
Piaga – Pajé.
Chimborazo – Vulcão atualmente inativo
localizado no Equador.
Referência:
ALVES, Castro. Jesuítas. In:
__________. Poesias completas: espumas
flutuantes. v. II. Nota Biográfica e Revisão de Bandeira Duarte. Rio de
Janeiro: Spiker, 1967. p. 66-69.
Muito bom!
ResponderExcluirola boa noite... esse Poema do Vate baiano Castro Alves qualquer que seja o sentido (figurado ou não, dos Jesuítas) é um monstruoso poema. Pensar que ele foi escrito quando o autor tinha apenas 21 anos, é ainda mais espantoso. Eu adoro esse poema. Não o coloco entre os cinco maiores dele, onde coloco: "O Livro e a América", "Mocidade e Morte", "Os Anjos da Meia-noite", "O Navio Negreiro" e "O Hóspede", esse um suprassumo da poesia castroalvesca. Adoro esse poema feito no estertor de sua vida... Mas Os Jesuítas é fabuloso!
ResponderExcluirPrezado(a): certamente, o poema é de uma lírica bem expressiva, por isso mesmo, entre os mais relevantes da obra poética de Castro Alves.
ExcluirJoão A. Rodrigues