Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 1 de junho de 2014

Norberto Bobbio – Teoria Geral do Direito (Parte IV)

(Para ler a Parte III, acesse aqui)

SEGUNDA PARTE − TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO (p. 171-321)
I.      Da Norma Jurídica ao Ordenamento Jurídico (p. 173-188)
A norma jurídica, tomada autonomamente, não denota suficiência para se ter uma ideia mais precisa do direito, sendo necessário o conhecimento sobre o ordenamento a que pertence, porquanto as normas jurídicas sempre existem num contexto de normas com relações particulares entre si, compondo, desse modo, um sistema normativo, ou melhor, um conjunto coordenado de normas chamado direito (p. 173-175).
As tentativas realizadas para caracterizar o direito através de algum elemento da norma jurídica podem ser reduzidas a quatro critérios: (i) formal; (ii) material; (iii) do sujeito que põe a norma; e (iv) do sujeito ao qual a norma se destina. Por critério formal entende-se aquele por meio do qual se define o direito pela via de qualquer elemento estrutural das normas chamadas jurídicas, as quais podem ser: (a) positivas ou negativas; (b) categóricas ou hipotéticas; e (c) gerais (abstratas) ou individuais (concretas). Por critério material se entende a apreciação que se poderia extrair do conteúdo das normas jurídicas, isto é, das ações reguladas, considerando as seguintes distinções principais: (a) ações internas e ações externas; e (b) ações subjetivas e ações intersubjetivas. Quanto ao critério do sujeito que põe a norma, refere-se à teoria que considera jurídicas as normas postas pelo poder soberano, a evidenciar a relação entre os conceitos de poder soberano e ordenamento jurídico. No se que refere ao critério do sujeito ao qual a norma é destinada, pode apresentar duas variantes, conforme se considere como destinatário o súdito ou o juiz (p. 176-179).
A seguir, Bobbio discorre sobre a norma jurídica, afirmando que detém execução garantida por uma sanção externa e institucionalizada. Sendo assim, se a sanção faz parte do caráter essencial das normas jurídicas, as normas sem sanção não se constituiriam em normas jurídicas. Entretanto, ao se falar de uma sanção organizada como elemento constitutivo do direito, há de se referir não às normas em particular, mas ao ordenamento normativo tomado em seu conjunto (p. 180-182).
O autor interpreta o direito, em sua acepção objetiva, como uma modalidade de sistema normativo e não como um tipo de norma, logo refutando a existência de um ordenamento integrado por uma só norma, ainda que não se furte a analisar tal hipótese. Assim, afirma que há três possibilidades de conceber um ordenamento composto de uma norma única (p. 184-185): (i) tudo é permitido: todavia uma norma de tal gênero seria a negação de qualquer ordenamento jurídico; (ii) tudo é proibido: que impossibilitaria qualquer vida social humana, uma vez que quaisquer ações, ainda que necessárias, seriam interditadas; e (iii) tudo é obrigatório: que também tornaria impossível a vida social, dado que as ações possíveis podem estar em conflito entre si.
Para além disso, argumenta-se que toda norma particular que regula uma ação – ordenando-a ou proibindo-a – implica uma norma geral exclusiva, vale dizer, “uma norma que subtrai àquela regulamentação específica todas as outras ações possíveis”, de outro modo, caso se diga que um comportamento “X” é obrigatório, concomitantemente se expressa a ideia de que “Não-X” é permitido (p. 185).
Paralelamente a tais normas de conduta, há normas de estrutura ou de competência, que não prescrevem a conduta que se deve ou não ter, senão as condições e procedimentos através dos quais são emanadas normas de conduta válidas (p. 186).
Bobbio encerra o capítulo destacando os problemas a serem atacados em cada um dos subsequentes: a unidade do ordenamento jurídico – associada à hierarquia das normas; a sua coerência – que remete ao problema das antinomias; a sua completude – associada à existência de lacunas; e as relações entre os ordenamentos jurídicos (p. 187-188).
II.     A Unidade do Ordenamento Jurídico (p. 189-218)
O autor inicia este capítulo comentando sobre a dificuldade de se rastrear todas as normas constituintes de um determinado ordenamento, sobretudo porque quase sempre não são derivadas de uma única fonte. A partir dessa ideia, distingue os ordenamentos jurídicos em simples e complexos, conforme as normas que os compõem derivem, respectivamente, de uma ou de mais de uma fonte (p. 189).
A complexidade de um ordenamento jurídico está associada à amplitude da tarefa de se criar regras de conduta numa sociedade, de tal sorte que nenhum poder ou órgão encontra-se em condições de satisfazer esse apelo sozinho. Como consequência, o poder supremo tende a recorrer a dois expedientes: (i) a recepção de normas já elaboradas, produzidas por ordenamentos diversos e precedentes; e (b) a delegação do poder de produzir normas jurídicas a poderes ou órgãos inferiores (p. 190).
Seguindo em suas ideias, o autor concebe as fontes do direito como os atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas, passando a classificar tais fontes em originárias (ou diretas) e derivadas (ou indiretas). Dentro das segundas, distingue, por sua vez, dois outros tipos de fontes: as fontes reconhecidas, de que o costume é um exemplo nos modernos ordenamentos estatais, em que a fonte direta e superior é a lei – que supõem o precitado fenômeno da recepção –, e as fontes delegadas – a que se também fez referência no parágrafo precedente (p. 190-191).
Como exemplo de fonte delegada, destaca-ser o regulamento frente à lei. A diferença que há entre as leis e os regulamentos é que a produção destes é confiada geralmente ao Poder Executivo por delegação do Poder Legislativo. Uma de suas funções é a de integrar leis muito genéricas, que contêm somente diretrizes de princípios e não poderiam ser aplicadas sem serem mais bem especificadas. Conforme se vai subindo na hierarquia das fontes, as normas tornam-se cada vez menos numerosas e mais genéricas; descendo, ao contrário, as normas tornam-se cada vez mais numerosas e mais específicas (p. 191-192).
Bobbio cita ainda outra fonte, o poder negocial – atribuído aos particulares de regularem, mediante atos voluntários, os próprios interesses –, revelando, posteriormente, que a sua classificação entre as fontes reconhecidas ou delegadas não apresenta nitidez, conforme os argumentos invoquem a autonomia privada como poder originário do Estado ou como um resíduo de um poder normativo natural ou privado (p. 192).
Deve-se entender, segundo o autor, como poder originário (ou a fonte das fontes) o ponto de referência último de todas as normas, ou de outro modo, o poder além do qual não existe outro capaz de justificar o ordenamento jurídico (p. 192-193).
Para se compreender a frequente complexidade dos ordenamentos jurídicos frente à multiplicidade de fontes, Bobbio levanta duas razões históricas fundamentais: (i) a limitação externa do poder normativo originário – o fato de que em uma dada sociedade há normas de vários gêneros, como as morais, as sociais, as religiosas, as usuais, as consuetudinárias, as regras convencionais etc., sendo que cada ordenamento jurídico superveniente não elimina as estratificações normativas daqueles que o precederam; e (ii) a limitação interna do poder normativo originário – trata-se da autolimitação do poder soberano, o qual subtrai a si próprio uma parte do poder normativo para concedê-la a outras entidades ou órgãos, dele dependentes de alguma forma (p. 193-194).
Esse duplo processo de formação de uma ordem jurídica acaba por refletir as duas principais concepções por meio das quais os jusnaturalistas explicam a passagem do estado natural ao estado civil. Segundo o pensamento jusnaturalista, o poder civil originário teria se formado a partir de um estado da natureza, mediante um contrato social, quer sob a forma hobbesiana – em que qualquer limitação futura ao poder civil seria uma autolimitação, vindo o direito natural a desaparecer ao dar vida ao direito positivo –, quer sob o molde lockiano – em que o poder civil nasceria originariamente limitado, sendo o direito positivo o instrumento para a atuação do preexistente direito natural (p. 194-195).
Findas tais considerações, o autor passa a discorrer sobre as fontes do direito, terminologia pela qual se deve entender “[..] aqueles fatos e aqueles atos de que o ordenamento jurídico depende para a produção de normas jurídicas”. Reconhece-se, ademais, que o ordenamento jurídico, para além de regular o comportamento das pessoas, regula do mesmo modo a forma pela qual as regras devem ser produzidas (p. 196).
Com efeito, de uma mesma fonte do direito podem emanar tanto normas de comportamento, destinadas a regular o comportamento das pessoas, como normas de estrutura, que normatizam o modo em que esse comportamento há de regular-se, isto é, normatizam os procedimentos de regulamentação jurídica. Bobbio denomina estas últimas de normas imperativas de segunda instância, entendidas como comandos de comandar, para contrapô-las às primeiras, as denominadas normas imperativas de primeira instância, verdadeiros comandos de fazer ou de não fazer (p. 197-198).
A classificação dos tipos das normas é muito mais complexa que a tripartição clássica em normas imperativas, proibitivas e permissivas, podendo-se distinguir nove tipos: (i) normas que mandam ordenar; (ii) normas que proíbem ordenar; (iii) normas que permitem ordenar; (iv) normas que mandam proibir; (v) normas que proíbem proibir; (vi) normas que permitem proibir; (vii) normas que mandam permitir; (viii) normas que proíbem permitir; e (xix) normas que permitem permitir (p. 198-199).
A unidade dentro do sistema de fontes de um ordenamento jurídico complexo é explicada tomando-se como referência a teoria da construção gradual do ordenamento jurídico, de Kelsen, pois na construção kelseniana da norma fundamental, que não depende de nenhuma outra, repousa tal fundamento de unidade (p. 199).
Caso se parta das normas inferiores, vê-se que derivam de suas superiores; estas, por sua vez, derivam de normas que se encontram no plano antecedente mais elevado, e assim sucessivamente, até se chegar à norma fundamental. A estrutura hierárquica de um ordenamento pode então ser representada sob a forma de uma pirâmide de planos sucessivos. No vértice da pirâmide se encontra a norma fundamental, com os planos intermediários sendo formados por normas executivas em respeito às normas superiores, que encarnam o cumprimento do dever que estas impõem, e produtivas em respeito às normas inferiores, que supõem a expressão de um poder originário ou derivado a cumprir. Na base da pirâmide se encontrariam os, exclusivamente, atos de natureza executiva (p. 200-203).
À medida que se avança de cima para baixo na pirâmide, o poder normativo torna-se mais circunscrito, haja vista os limites com que o poder superior restringe e regula o poder inferior, os quais podem ser de dois tipos: (a) limites materiais ou de conteúdo; e (b) limites formais. Tais limites podem ser impostos contemporaneamente, embora não necessariamente. Com respeito aos limites formais, são constituídos por meio das normas da constituição que prescrevem o modo de funcionamento dos órgãos legislativos (p. 204-206).
Em sequência, Bobbio identifica a norma fundamental como aquela que estabelece a necessidade de se obedecer ao poder originário ou poder constituinte, pois se a constituição é a norma superior de um ordenamento jurídico, e o termo norma significa imposição de deveres, todo dever, como se acaba de expor, pressupõe um poder correlato. Portanto, toda norma constitucional há de derivar, necessariamente, de um poder normativo, e esse poder normativo é o poder constituinte (p. 207-208).
A norma fundamental, além de critério unificador de todas as normas do sistema, serve também para conferir validade às outras normas, pois determina que estas hajam sido ditadas por um poder legítimo para expedi-las. Se o poder do qual emana a norma se pode relacionar, de algum modo, com a norma fundamental, a norma pertenceria ao ordenamento e estaria, nessa hipótese, dotada de validade. Além disso, a unidade das normas de um ordenamento jurídico na norma fundamental, além de determinar sua validade, é exigência de sua eficácia ou cumprimento. A norma fundamental, ao impor o dever de obedecer aos detentores do poder originário ou constituinte, legitima-o, ao mesmo tempo, para exercer a força, por meio da organização das sanções, mediante a estrutura que determina as suas natureza e entidade, as pessoas que devem aplicá-las e sua execução (p. 209-210).
Ainda que Bobbio concorde com Kelsen na consideração de que a norma fundamental seja um pressuposto do sistema, o autor argumenta ainda que, ao ser ela o fundamento do sistema, careceria por sua vez de fundamento dentro deste último. Com efeito, todo sistema tem uma origem, sendo tal origem o argumento primeiro da norma fundamental, e, portanto, do princípio da unidade que nela repousa, fora do sistema, e do qual se abstrai a justificação última do poder que a ela se atribui, e que esta, por seu turno, transfere ao poder originário ou constituinte para que dele emanem todas as normas do sistema (p. 210-211).
Bobbio identifica o poder originário com as forças políticas que hajam instaurado um determinado ordenamento jurídico. O poder constituinte, como poder último, deriva de uma norma superior – a norma fundamental – que lhe atribui o dever de produzir normas jurídicas. Essa norma não depende de nenhuma outra, devendo ser entendida como um pressuposto do ordenamento. Ainda que não expressa, ela cumpre no sistema normativo “[...] a mesma função a que estão destinados os postulados num sistema científico” (p. 211).
Os postulados se impõem por convicção ou por presunção de validade, deles se deduzindo todas as demais proposições. O mesmo ocorre com a norma fundamental, ela também uma convenção ou uma proposição evidente, expansível em uma série de fontes das quais emanam diversas normas que lhe são sucedâneas, isto é, leis, regulamentos, decisões judiciais etc. (p. 211-212).
Bobbio comenta, a seguir, que não há uma resposta unívoca ante o questionamento de qual seja o fundamento último do poder, pois enquanto para as doutrinas teológicas tal fundamento seria Deus, para as teorias jusnaturalistas este haveria de encontrar-se na razão mesma comum a todos os homens, existindo ainda outras teorias a defenderem que o fundamento do poder deriva dum contrato social entre os membros da sociedade e aqueles a quem é confiado o poder (p. 212-214).
Partindo para a dicotomia direito e força, o autor sustenta que, mesmo que a aplicação da força, legitimada pela norma fundamental, seja exigência de validade desse ordenamento, não supõe que o seu uso seja justo, senão apenas legítimo como meio para organizar a sociedade, a ponto de não se poder subjugar toda a legislação à luz da organização dessa mesma força (p. 214-215).
Ao contrário do que se defende, acerca da força como um instrumento para a realização do direito enquanto ordem jurídica, Kelsen e Ross sustentam que a força seria um objeto da regulamentação jurídica, ou de outro modo, que o direito deva ser entendido não como um conjunto de normas que se tornam válidas por meio da força, mas como um conjunto de normas que regulam o exercício da força numa dada sociedade (p. 216-218).
III.    A Coerência do Ordenamento Jurídico (p. 219-258)
Uma vez exposta a ideia de unidade do ordenamento jurídico, à luz da ideia de norma fundamental kelseniana, Bobbio passa a se perguntar se tal unidade se identifica com uma totalidade ordenada, ou seja, se aquele se encontra integrado por “[...] um conjunto de organismos, entre os quais existe uma certa ordem”. Porém, aqui, o conceito de ordem há de se ser entendido associado não exclusivamente à unidade de todas as normas na norma superior, mas que, para além disso, todas as normas hão de estar em relação de coerência, ou seja, não ser incompatíveis entre si (p. 219).
Questionando-se acerca do que seja um sistema, o autor reporta-se a Kelsen para distinguir dois tipos deles, um estático e outro dinâmico. Um sistema seria estático quando as normas se encontram relacionadas umas às outras como as proposições de um sistema dedutivo, ou melhor, em face de que derivam umas das outras partindo de uma ou mais normas originárias de caráter geral. Por outro lado, um sistema seria dinâmico quando as normas que o compõem derivam umas das outras através de sucessivas delegações de poder, vale dizer, não através do seu conteúdo, mas através da autoridade que as colocou. Poder-se-ia dizer, então, que a estática estaria mais ligada ao conteúdo e a dinâmica mais à dimensão formal (p. 219-220).
A partir dessa classificação, Kelsen defende que os ordenamentos jurídicos seriam sistemas dinâmicos, enquanto que os ordenamentos morais seriam estáticos, levando-o à seguinte indagação: “Que ordem pode existir entre as normas de um ordenamento jurídico, se o critério de pertinência é puramente formal, ou seja, diz respeito não à conduta que elas regulam, mas unicamente ao modo com que foram postas?” (p. 221-222).
Bobbio passa então à busca de um significado para o termo sistema, centrando-se inicialmente na conceituação de um sistema indutivo, com o que aduz, como um primeiro conceito, que um dado ordenamento constitui um sistema enquanto todas as normas jurídicas daquele ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais, considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico (p. 223-224).
Um segundo conceito para sistema, mais precisamente um sistema indutivo, encontra-se na ciência do direito moderno, com Savigny como representante de uma teoria que interpreta a ciência jurídica moderna nascida da passagem da jurisprudência exegética à jurisprudência sistemática ou, em outras palavras, que a jurisprudência se elevou ao nível de ciência tornando-se sistemática (p. 225-226).
Entretanto, para o autor, o terceiro conceito de sistema seria o mais interessante, e tema principal do terceiro capítulo de sua obra. Com efeito, diz-se que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Aqui, sistema equivale à validade do princípio que exclui a incompatibilidade das normas, ou ainda, pode-se dizer que o direito não tolera antinomias (p. 227-228).
Bobbio passa então a discorrer sobre as antinomias existentes em ordenamentos jurídicos, a partir dos relacionamentos intercorrentes entre as quatro figuras de qualificação normativa, quais sejam, o obrigatório, o proibido, o permitido positivo e o permitido negativo. Desse modo, verificam-se as seguintes modalidades de relações (p. 228-231): (i) relação entre proposições contrárias, isto é, uma obrigatória e outra proibida; (ii) relação entre proposições contraditórias, do tipo uma obrigatória e outra permitida negativa; (iii) relação entre proposições contraditórias, do tipo uma proibida e outra permitida positiva; (iv) relação entre proposições subalternas, do tipo uma obrigatória e outra permitida positiva; (v) relação entre proposições subalternas, do tipo uma proibida e outra permitida negativa; e (vi) relação entre proposições subcontrárias, do tipo uma permitida negativa e outra permitida positiva.
A partir das considerações acima, Bobbio define normas incompatíveis como aquelas que não podem ser ambas verdadeiras, concluindo daí que seriam três as relações de incompatibilidade, no caso, de fundo material: contrariedade – entre uma norma que ordena fazer algo e outra que proíbe fazê-lo; contraditoriedade – entre uma norma que ordena fazer algo e outra que permite não fazê-lo; e contraditoriedade novamente – entre uma norma que proíbe fazer algo e outra que permite fazê-lo (p. 231-232).
Além disso, para que possam ocorrer antinomias, são necessárias duas outras condições, que devem ocorrer no mesmo momento: (i) as normas devem pertencer a um mesmo ordenamento jurídico; e (b) devem possuir o mesmo âmbito de validade temporal, espacial, pessoal e material (p. 233-234).
Ainda no tocante às antinomias, poderiam ser classificadas em três tipos, conforme a maior ou menor extensão do contraste entre as duas normas antinômicas e seus respectivos âmbitos de validade: (i) antinomia total-total; (ii) antinomia parcial-parcial; e (iii) antinomia total-parcial (p. 234-235).
Bobbio ainda discorre sobre a existência de determinadas antinomias as quais classifica como impróprias – em contraposição às que até aqui foram desenvolvidas. Começa, então, detalhando as denominadas antinomias de princípio, que seriam aquelas que surgem em razão de que o ordenamento jurídico pode se inspirar em valores que se contrapõem, ou de outra forma, em ideologias opostas. Reporta-se, também, às antinomias de valoração, que se verificam quando uma norma pune um delito menor com uma pena mais grave que a infligida a um maior. Uma última acepção de antinomia seria a associada às antinomias teleológicas, que ocorrem quando há uma oposição entre a norma que prescreve o meio para alcançar o fim e a que prescreve o fim (p. 236-237).
Após as considerações abordadas nos parágrafos precedentes, o autor analisa a forma de solução do problema gerado pelas antinomias. Torna-se necessário frisar que há casos em que as antinomias são solúveis, tanto quanto outros que são insolúveis. As razões pelas quais nem todas as antinomias são solúveis são de duas ordens: a) há casos nos quais não se pode aplicar nenhuma das regras elaboradas para a solução das antinomias; e b) há casos em que podem ser aplicadas ao mesmo tempo duas ou mais regras conflitantes entre si. As antinomias solúveis são ditas aparentes e as insolúveis reais. Desse modo, denominam-se antinomias reais aquelas em que o intérprete é abandonado a si mesmo ou pela falta de um critério ou por conflito entre os critérios dados (p. 237-238).
O intérprete do direito encontra-se vinculado por três regras na hora de resolver essas antinomias (p. 238-242): (i) critério cronológico – a norma posterior derroga a anterior, ou seja, lex posterior derogat priori; (ii) critério hierárquico – a norma superior prevalece sobre a inferior, isto é, lex superior derogat inferiori; e (iii) critério da especialidade – a norma especial prevalece sobre a norma geral; ou melhor, lex specialis derogat generali.
Assim, o critério cronológico resolve o problema da antinomia quando duas normas incompatíveis são sucessivas; o hierárquico quando se trata de duas normas incompatíveis que estão em diferentes planos; e o critério da especialidade quando entra em conflito uma norma geral com uma norma especial (p. 242).
Há casos nos quais a aplicação de alguns desses critérios resulta inoperante à hora de resolver a antinomia: quando se tratam de normas contemporâneas, de um mesmo nível e ambas gerais. É o caso de duas normas gerais e incompatíveis que se encontram recolhidas em um mesmo código. Aqui é aplicável um critério recorrente, mesmo que não-vinculante para o intérprete, que é o de distinguir as normas segundo sua forma: imperativas, proibitivas e permissivas. Então se pode estabelecer o critério de fazer prevalecer, no caso de conflito entre uma norma imperativa ou proibitiva e outra permissiva, esta última, por ser a mais favorável (p. 243).
Outra hipótese é a de que entrem em conflito uma norma imperativa e outra proibitiva, alcançando-se, geralmente, a conclusão de que se trata de duas normas contrárias, pelo que não podem ser ambas verdadeiras, porém, sim, podem ser as duas falsas, com ambas podendo eliminar-se mutuamente, e o comportamento deixa de considerar-se ordenado ou proibido para passar a ser permitido ou lícito (p. 243-244).
Porém, no caso de não serem aplicáveis as regras derivadas dos três critérios – hierárquico, cronológico e de especialidade –, a solução fica exclusivamente nas mãos do intérprete do direito, juiz ou jurista, que se verá à frente de três possibilidades: (i) eliminar uma norma – quando se terá uma interpretação ab-rogante simples; (ii) eliminar as duas – havendo neste caso uma interpretação ab-rogante dupla; e (iii) conservar as duas – quando se terá uma interpretação corretiva visando à eliminação da incompatibilidade (p. 245-248).
Contudo, o problema se aprofunda quando a duas normas incompatíveis entre si se podem aplicar, ao mesmo tempo, mais de um critério dos assinalados anteriormente, e de tal aplicação resultam soluções distintas. Neste caso, depara-se com um conflito entre critérios, a que Bobbio denomina antinomia de segundo grau (p. 250-251).
Os conflitos entre critérios e as soluções preconizadas são (p. 251-254): (i) conflito entre o critério hierárquico e o cronológico – ocorre quando uma norma superior e anterior é incompatível com uma inferior e posterior, devendo prevalecer a norma superior e anterior, tendo prioridade, portanto, o critério hierárquico sobre o cronológico; (b) conflito entre o critério cronológico e o de especialidade – ocorre quando uma norma anterior e especial é incompatível com uma outra posterior e geral, devendo prevalecer a norma anterior e especial, tendo prioridade, portanto, o critério da especialidade sobre o cronológico; e (c) conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade – ocorre quando uma norma superior e geral é incompatível com uma norma inferior e especial. Nessa situação, não há uma regra consolidada de solução da antinomia, devendo a interpretação levar em conta as circunstâncias, ainda que do ponto de vista meramente teórico deva prevalecer o critério de hierarquia, pois, em todo caso, inclusive os preceitos constitucionais poderiam ser modificados no momento de sua aplicação efetiva por uma norma que, mesmo inferior, regulasse a matéria de um modo mais específico.
O autor conclui o capítulo tratando do que assinala como dever da coerência, no sentido de que em um ordenamento jurídico não devem existir antinomias, questionando-se se tal fato diz respeito a um dever jurídico, dirigido aos legisladores e aos aplicadores das normas. Nesse contexto, analisa três situações possíveis entre duas normas antinômicas: (i) em níveis hierárquicos distintos – o dever de coerência atrela-se quer às ações do legislador quer às do juiz; (ii) em momentos sucessivos no tempo – não há dever de coerência para o legislador, mas tão-somente para o juiz; e (iii) no mesmo nível hierárquico e contemporâneas – não há dever de coerência nem para o legislador nem para o juiz. Sob tais argumentos, o autor observa, por fim, que a coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento (p. 254-257).

(Para ler a Parte V, acesse aqui)


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2 comentários:

  1. Bom dia professor, excelente resenha, está contribuindo muito com os meus estudos. consegue disponibilizar a parte V, não consigo localizar na pesquisa. Obrigada!

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  2. Prezada Leila,
    A parte cinco da resenha em apreço encontra-se no endereço abaixo. O que faltava eram algumas conexões que, com o seu aviso, foram devidamente atualizadas. Ok?!
    http://blogdocastorp.blogspot.com.br/2014/06/norberto-bobbio-teoria-geral-do-direito_2.html
    Um abraço.
    João A. Rodrigues

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