Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Raul Pompeia - A Missão da Arte

Eis aqui um excerto daquela que é a segunda conferência do Dr. Cláudio – professor da casa e presidente efetivo do “Grêmio Literário Amor ao Saber” –, sobre a “Arte em geral”, adjetivada pelo narrador de “O Ateneu” – vale dizer, o “Sérgio” adulto, sobre cujas memórias escolares se debruça para contar-nos as peripécias – como “subversiva”, embora não à maneira da primeira conferência, crítica em relação às fragilidades da Literatura no Brasil.

 

Consigne-se que a obra “O Ateneu”, de Raul Pompeia (1863-1895), configura um pungente retrato naturalista de uma sociedade em decadência, a retratar, no âmbito miniaturizado de uma instituição de ensino, as mais amplas patologias da então sociedade aristocrática monárquica pátria, não sem motivo incendiada deliberadamente ao seu final pelo autor fluminense, como que a metaforizar o seu desejo de ver derrotado o contexto em que inserta – o que, de fato, acabou por suceder, com o advento da República, em fins do século XIX: tenha-se em conta, a propósito, que “O Ateneu” veio à luz em 1888 – ano da abolição da escravatura no país –, nas páginas da “Gazeta de Notícias”, e, logo no ano subsequente, declarou-se a Proclamação da República.

 

O fragmento que a seguir se transcreve lança luzes sobre a provável visão do autor acerca da missão e da natureza da arte, assim como sobre a sua relação com a moral e a sociedade onde aflora: a arte lhe parece ingênita, inata, espontânea, por conseguinte, uma expressão natural da humanidade a veicular certa figuração estética e beleza que são um fim em si mesmas, explico-me melhor, sem um necessário propósito pragmático ou utilitário, cingido no mais das vezes por arbitrárias valorações convencionais.

 

J.A.R. – H.C.

 

Raul Pompeia

(1863-1895)

 

A Missão da Arte

 

Qual a missão da arte? Originaria da propensão erótica fora do amor, a arte é inútil, – inútil como o esplendor corado das pétalas sobre a fecundidade do ovário. Qual a missão das pétalas coradas? De que nos serve a primavera ser verde? As aves cantam. Que se aproveita do cantar das aves? A arte é uma consequência e não um preparativo. Nasce do entusiasmo da vida, do vigor do sentimento, e o atesta. Agrada sempre, porque o entusiasmo é contagioso como o incêndio. A alma do poeta invade-nos. A poesia é a interpretação de sentimentos nossos. Não tem por fim agradar.

E, depois, reclamar títulos de utilidade às divagações graciosas de uma energia da alma, que significa em primeira manifestação a própria perpetuidade da espécie?!

Além de inútil, a arte é imoral. A moral é o sistema artístico da harmonia transplantado para as relações de coletividade. Arte sui generis. Se é possível eficazmente o regime social das simetrias da justiça e da fraternidade, o futuro há de provar. Em todo caso é arte diferente e as artes não se combinam senão em produtos falsos, de convenção.

Poema intencionalmente moral é o mesmo que estátua polícroma ou pintura em relevo. Apenas uma coisa possível, nada mais; há também quem faça flores, com asas de barata e pernas.

A verdadeira arte, a arte natural, não conhece moralidade. Existe para o indivíduo sem atender à existência de outro indivíduo. Pode ser obscena na opinião da moralidade: Leda; pode ser cruel: Roma em chamas, que espetáculo!

Basta que seja artística.

Cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem, a arte é a superioridade humana – acima dos preceitos que se combatem, acima das religiões que passam, acima da ciência que se corrige; embriaga como a orgia e como o êxtase.

E desdenha dos séculos efêmeros.

 

A Reunião

(Marie Bashkirtseff: pintora ucraniana)

 

Referência:

 

POMPEIA, Raul. A missão da arte. In: __________. O Ateneu (Seção 6). São Paulo, SP: Moderna, 1983. p. 121-122.

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