O adjetivo conferido
por Lélia a este poema – “Aquerôntico” – diz muito sobre o que se passa em seus
versos, com o rio da mitologia grega a simbolizar a fronteira entre o mundo dos
vivos e o reino dos mortos, flúmen delicado por onde, durante as noites, os
mortos regressam numa frágil “barca de papel” para ver o que se passa conosco.
Presença constante em
nossas vidas, inclusive quando não estamos conscientes dela, a morte sempre
está à espreita: os que já se encontram na outra margem aceitam-na com
naturalidade e ficam a nos observar com curiosidade e indulgência, embora a
certa distância, ilustrados que estão por uma compreensão mais profunda da humana
existência, da qual parecem nos querer dar conta durante os enlevos do sono.
J.A.R. – H.C.
Lélia Coelho Frota
(1938-2010)
Aquerôntico
É de noite que os
mortos voltam
em sua barca de papel
a roçar a porta do
sono
em que inermes escurecemos
mais um dia – pulmão
de chama
contraindo a luz da
manhã!
E de noite, pela
amurada
que vêm se debruçar
conosco
e indulgem – apenas
sorriem
sem qualquer
resguardo, sem ênfase –
em ir e vir, em ter
partido.
Impressões de viagem?
Alheias
como a do perfil de
uma dracma.
Remiram-nos
maliciosos
pensos de ternura se
quedam
em sua fosca
primavera,
atrás de embaciados
acenos,
pacientes, à nossa
espera.
A Barca do Aqueronte
(Félix Resurrección
Hidalgo: pintor filipino)
Referência:
FROTA, Lélia Coelho.
Aquerôntico. In: __________. Poesia reunida: 1956-2006. Rio de Janeiro,
RJ: Bem-Te-Vi, 2013. p. 256.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário