Com aquele seu estilo
tão característico, a meio termo entre o abstrato e o filosófico, Borges nos desafia
a reavaliarmos a ideia de que a morte seja o fim absoluto para os humanos, pois
que, a seu ver, pode haver uma espécie de continuidade espiritual entre os
vivos e os mortos, por ser indubitável que os entes queridos, embora ausentes, costumam nos acompanhar e afetar nossas existências e percepções de mundo.
Vagando num páramo
transcendental, “como o Deus dos místicos” – de quem as palavras são inaptas para
descrever os atributos ou os singulares predicados –, o fato é que nós, os
vivos, somos incapazes de compreender completamente a morte – esse estado invulnerável
à passagem do tempo –, mesmo que, “como ladrões”, despojemos os mortos de tudo
quanto hajam legado à “sucessão das noites e dos dias”.
J.A.R. – H.C.
Jorge Luis Borges
(1899-1986)
Remordimiento por
cualquier muerte
Libre de la memoria y
de la esperanza,
ilimitado, abstracto,
casi futuro,
el muerto no es un muerto:
es la muerte.
Como el Dios de los
místicos,
de Quien deben
negarse todos los predicados,
el muerto ubicuamente
ajeno
no es sino la
perdición y ausencia del mundo.
Todo se lo robamos,
no le dejamos ni un
color ni una sílaba:
aquí está el patio
que ya no comparten sus ojos,
allí la acera donde
acechó su esperanza.
Aun lo que pensamos
podría estar
pensándolo él;
nos hemos repartido
como ladrones
el caudal de las
noches y de los días.
En: “Fervor de Buenos
Aires” (1923)
Dia e Noite
(Sarah Wall: artista
norte-americana)
Remorso por qualquer
morte
Livre da memória e da
esperança,
ilimitado, abstrato,
quase futuro,
o morto não é um
morto: é a morte.
Como o Deus dos
místicos,
de Quem devem
negar-se todos os predicados,
o morto, ubiquamente
alheio,
não é senão a
perdição e a ausência do mundo.
Roubamos-lhe tudo,
não lhe deixamos nem
uma cor nem uma sílaba:
aqui está o pátio que
seus olhos já não perscrutam,
ali o passeio onde sua
esperança punha-se à espreita.
Até mesmo o que pensamos,
ele poderia estar
pensando;
como ladrões,
repartimos entre nós
a sucessão das noites
e dos dias.
Em: “Fervor de Buenos
Aires” (1923)
Referência:
BORGES, Jorge Luis. Remordimiento
por cualquier muerte. In: __________. Obra poética: 1923-1977. 2. ed.
Madrid, ES: Alianza Tres (por autorización de Emecé Editores), 1981. p. 46.
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