Como uma esponja, as
crianças absorvem e assimilam muito do que está em seu entorno, convertendo-o
em uma parte inerente ao seu ser: eis o mote dominante deste poema de Whitman, caudaloso
retrato poético da infância e de como ela incorpora influências decisivas na formação
da identidade de uma pessoa, convertendo-se em memórias indeléveis na vida adulta.
Por certo, a infância
modela e preenche a mente e o espírito dos miúdos com percepções e experiências
– muitas vezes profundas e duradouras – apropriadas no convívio quotidiano com
os pais, familiares, parentes e as amizades mais próximas, conformando a primeira
versão do que sejam a realidade e a verdade à sua frente, versão essa que, no
avançar dos anos, vai se tornando mais matizada, em contato com a natureza e com
a compósita pluralidade dos tipos humanos.
J.A.R. – H.C.
Walt Whitman
(1819-1892)
There was a child
went forth every day
There was a child
went forth every day;
And the first object
he look’d upon, that object he
became;
And that object
became part of him for the day, or a
certain part of the
day, or for many years, or
stretching cycles of
years.
The early lilacs
became part of this child,
And grass, and white
and red morning-glories, and
white and red clover,
and the song of the phoebe-
bird,
And the Third-month
lambs, and the sow’s pink-faint
litter, and the mare’s
foal, and the cow’s calf,
And the noisy brood
of the barn-yard, or by the mire
of the pond-side,
And the fish
suspending themselves so curiously below
there – and the
beautiful curious liquid,
And the water-plants
with their graceful flat heads – all
became part of him.
The field-sprouts of
Fourth-month and Fifth-month
became part of him;
Winter-grain sprouts,
and those of the light-yellow
corn, and the
esculent roots of the garden,
And the apple-trees
cover’d with blossoms, and the fruit
afterward, and
wood-berries, and the commonest
weeds by the road;
And the old drunkard
staggering home from the out-
house of the tavern,
whence he had lately risen,
And the
school-mistress that pass’d on her way to the
school,
And the friendly boys
that pass’d – and the quarrelsome
boys,
And the tidy and
fresh-cheek’d girls – and the barefoot
negro boy and girl,
And all the changes
of city and country, wherever he went.
His own parents,
He that had father’d
him, and she had conceiv’d
him in her womb, and
birth’d him,
They gave this child
more of themselves than that;
They gave him
afterward every day – they became part
of him.
The mother at home,
quietly placing the dishes on
the supper-table;
The mother with mild
words—clean her cap and gown,
a wholesome odor
falling off her person and
clothes as she walks
by;
The father, strong,
self-sufficient, manly, mean, anger’d,
unjust;
The blow, the quick
loud word, the tight bargain, the
crafty lure,
The family usages,
the language, the company, the
furniture – the
yearning and swelling heart,
Affection that will
not be gainsay’d – the sense of what
is real – the thought if, after all, it should prove unreal,
The doubts of
day-time and the doubts of night-time –
the curious whether
and how,
Whether that which
appears so is so, or is it all flashes
and specks?
Men and women crowding
fast in the streets – if they
are not flashes and
specks, what are they?
The streets
themselves, and the façades of houses, and
goods in the windows,
Vehicles, teams, the
heavy-plank’d wharves – the huge
crossing at the
ferries,
The village on the
highland, seen from afar at sunset –
the river between,
Shadows, aureola and
mist, the light falling on roofs
and gables of white
or brown, three miles off,
The schooner near by,
sleepily dropping down the tide
– the little boat
slack-tow’d astern,
The hurrying tumbling
waves, quick-broken crests,
slapping,
The strata of color’d
clouds, the long bar of maroon-
tint, away solitary
by itself – the spread of purity
it lies motionless
in,
The horizon’s edge,
the flying sea-crow, the fragrance
of salt marsh and
shore mud;
These became part of
that child who went forth every
day, and who now
goes, and will always go forth
every day.
Sou uma criança
(Wilson C. Edward: pintor
inglês)
Havia uma criança
indo adiante
Todos os dias havia
uma criança indo adiante,
E o primeiro objeto
para o qual ela olhava, nele se
transformava,
E aquele objeto
tornava-se parte dela durante o dia
ou durante uma parte
do dia,
Ou por muitos anos,
ou isso se estendia por
ciclos de anos.
Os lilases da manhã
tornaram-se parte dessa criança,
E a relva e as ipomeias
brancas e vermelhas, e o trevo
branco e o vermelho,
e a canção do pássaro febo,
E os cordeiros de
três meses e a barriga rosa pálida
da fêmea do javali, e
o potro da égua e o bezerro
da vaca,
E a barulhenta
chocadeira do pátio do celeiro ou o
lodaçal na lateral do
açude,
E os peixes saltando
tão curiosamente lá de baixo
e o belo e curioso líquido,
E as plantas
aquáticas com suas graciosas cabeças chatas,
tudo isso se tornou
parte dela.
Os brotos do campo em
seu quarto mês e quinto mês
tornaram-se parte dela,
Brotos de grãos do
inverno e aqueles de milho
amarelo-claro e as raízes
comestíveis do jardim,
E as macieiras
cobertas com botões e depois com frutos
e as bagas de madeira
e as ervas daninhas mais
comuns às margens da
estrada,
E o velho bêbado sai
cambaleando do banheiro
da taverna, de onde
acabara de se levantar,
em direção à sua
casa,
E a diretora da
escola que passou a caminho da escola,
E os garotos
amistosos que passaram, os garotos brigões,
E as meninas
asseadas, com rosto fresco, e o menino
negro e a menina
negra de pés descalços,
E todas as alterações
das cidades e dos países, em todos
os lugares pelos quais ela passava.
Seus próprios pais,
aquele que lhe havia concedido
a paternidade e
aquela que a havia concebido em
seu ventre e lhe dado
à luz,
Deram a essa criança
mais de si do que essas coisas,
Deram-se a ela todos
os dias que se seguiram e
se tornaram parte
dela.
A mãe, em casa, silenciosamente,
colocando os pratos
na mesa de jantar,
A mãe, com palavras
amenas, limpa sua touca
e sua camisola, um
odor saudável sai dela e de suas
roupas quando passa,
O pai, forte, autossuficiente,
viril, mau, raivoso, injusto,
O estouro, a palavra
dita com rapidez em alta voz,
a barganha difícil de
obter, o engodo ladino,
Os costumes da
família, a linguagem, a companhia,
a mobília, o coração
enternecido e pesado,
Afeição que não será
rejeitada, o senso do que é real,
o pensamento de que
afinal a sua irrealidade deveria
ser provada,
As dúvidas durante o
dia e as dúvidas durante a noite,
o curioso se e
o como,
Se aquilo parece ser
é mesmo, ou será tudo apenas feito
de cintilações e
partículas?
Multidões de homens e
mulheres caminhando rápido nas
ruas, se não são
cintilações e partículas, o que são?
As próprias ruas e as
fachadas das casas e os produtos
nas janelas,
Veículos, times, os
ancoradouros com pesado chão de
madeira, a enorme interseção
nos portos das balsas,
A vila na encosta
vista a distância na hora do crepúsculo,
e o rio que atravessa
a paisagem,
Sombras, o halo e a
bruma, a luz caindo sobre os
telhados e os
espigões brancos ou marrons a duas
milhas de distância,
A escuna próxima,
sonolentamente carregada pela maré,
o pequeno barco rebocado
frouxamente à popa,
As ondas apressadas
que tombam, as crestas rapidamente
quebradas, batendo,
Os estratos de nuvens
coloridas, as distantes e solitárias
tiras longas de matiz
castanho, a disseminação de
pureza em que se assentam
imóveis,
A borda do horizonte,
o corvo do mar em seu voo,
a fragrância do pântano
salino e a da lama da praia,
Tudo isso se tornou
parte daquela criança que ia adiante
todos os dias, e que
agora vai, e sempre irá
em frente todos os
dias.
Referências:
Em Inglês
WHITMAN, Walt. There
was a child went forth every day. In: __________. Leaves of grass (1871-72).
Walt Whitman: an encyclopedia. Edited by J.R. LeMaster and Donald D. Kummings. New
York, NY: Garland Publishing, 1998. p. 253-255.
Em Português
WHITMAN, Walt. Havia
uma criança indo adiante. Tradução de Luciano Alves Meira. In: __________. Folhas
de relva. Tradução de Luciano Alves Meira. 2. ed. São Paulo, SP: Martin
Claret, 2012. p. 359-360. (Coleção ‘A obra-prima de cada autor’; vol. 42)
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