Estes “ecos” da
artista e poetisa portuguesa são como que escólios pessoais ou “reverberações”
acerca de ideias presentes no poema “Os Anjos” (“Die Engel”), de Rilke – já aqui postado –, ao
qual Hatherly oferece, ademais, tradução própria que abaixo se transcreve:
Os Anjos
Todos têm uma boca
lassa
E as claras almas sem
limites.
E em seus olhos por
vezes perpassa
Uma saudade (talvez
de pecado).
Quase todos parecidos
uns com os outros
Nos jardins de Deus
estão calados
Como se fossem
inúmeros intervalos
Em sua força e sua
melodia.
Mas quando se desdobram
suas asas
Despertam uma tal
vibração
Como se Deus com sua
vasta criadora mão
Folheasse o obscuro
Livro do Início.
(HATHERLY, 1999, p.
81)
No primeiro “eco”, a
poetisa vislumbra nos anjos uma projeção das aspirações e desejos humanos, como
se, aos simples mortais, fonte de luz e de inspiração fossem, mas que, nada
obstante, não logram nos oferecer respostas concretas. Segue no segundo “eco” a
noção de que são seres ilusórios, enigmáticos, e que, a despeito de sua
natureza diáfana, persistem na mente humana num autêntico e “extremo desafio”, pois
que se mantêm à margem de nosso controle.
J.A.R. – H.C.
Ana Hatherly
(1929-2015)
Eco I
Porque temos as
nossas almas lassas
sonhamos por vezes
com os anjos que inventamos
e os anjos que
sonhamos
obstinados
gigantescos entes
enchem nossos anseios
veementes
com seu invisível
ímpeto claro.
E porque é enorme a
nossa fome
em nossos obscuros
repetidos apelos
sonhamos vê-los
ouvindo sua voz.
Mas os anjos não
falam
e quando abrem suas
grandes asas
as suas irisadas
esplêndidas penas
perpassam nosso
anseio com incrível fulgor
e ao nosso frágil
singular fervor
dispensam o seu
brilho inútil.
(HATHERLY, 1999, p. 82)
Asas de Anjo
(Newel Hunter:
artista norte-americano)
Eco II
Obstinadamente
os anjos
enchem nosso anseio
veemente
Sereias do ar
são quimeras da mente
Activo sonho
de nós independentes
da nossa invenção
são reféns ardentes
e da ambição
que a todos seduz
desafio extremo
vertigem de luz
Sobre os despojos das
almas escassas
pairam calados
com suas bocas lassas.
(HATHERLY, 1999, p. 83)
Anjo Guardião
(Riis Victor: pintor
russo)
Referência:
Hatherly, Ana. Eco I
/ Eco II. In: __________. Rilkeana. 1. ed. Lisboa, PT: Assírio &
Alvim, 1999.
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