Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Ana Hatherly - Ecos I e II

Estes “ecos” da artista e poetisa portuguesa são como que escólios pessoais ou “reverberações” acerca de ideias presentes no poema “Os Anjos” (“Die Engel”), de Rilke – já aqui postado –, ao qual Hatherly oferece, ademais, tradução própria que abaixo se transcreve:

 

Os Anjos

 

Todos têm uma boca lassa

E as claras almas sem limites.

E em seus olhos por vezes perpassa

Uma saudade (talvez de pecado).

 

Quase todos parecidos uns com os outros

Nos jardins de Deus estão calados

Como se fossem inúmeros intervalos

Em sua força e sua melodia.

 

Mas quando se desdobram suas asas

Despertam uma tal vibração

Como se Deus com sua vasta criadora mão

Folheasse o obscuro Livro do Início.

 

(HATHERLY, 1999, p. 81)

 

No primeiro “eco”, a poetisa vislumbra nos anjos uma projeção das aspirações e desejos humanos, como se, aos simples mortais, fonte de luz e de inspiração fossem, mas que, nada obstante, não logram nos oferecer respostas concretas. Segue no segundo “eco” a noção de que são seres ilusórios, enigmáticos, e que, a despeito de sua natureza diáfana, persistem na mente humana num autêntico e “extremo desafio”, pois que se mantêm à margem de nosso controle.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ana Hatherly

(1929-2015)

 

Eco I

 

Porque temos as nossas almas lassas

sonhamos por vezes com os anjos que inventamos

e os anjos que sonhamos

obstinados gigantescos entes

enchem nossos anseios veementes

com seu invisível ímpeto claro.

 

E porque é enorme a nossa fome

em nossos obscuros repetidos apelos

sonhamos vê-los

ouvindo sua voz.

 

Mas os anjos não falam

e quando abrem suas grandes asas

as suas irisadas esplêndidas penas

perpassam nosso anseio com incrível fulgor

e ao nosso frágil singular fervor

dispensam o seu brilho inútil.

 

(HATHERLY, 1999, p. 82)

 

Asas de Anjo

(Newel Hunter: artista norte-americano)

 

Eco II

 

Obstinadamente

os anjos

enchem nosso anseio veemente

 

Sereias do ar

são quimeras da mente

 

Activo sonho

de nós independentes

da nossa invenção

são reféns ardentes

e da ambição

que a todos seduz

desafio extremo

vertigem de luz

 

Sobre os despojos das almas escassas

pairam calados

com suas bocas lassas.

 

(HATHERLY, 1999, p. 83)

 

Anjo Guardião

(Riis Victor: pintor russo)

 

Referência:

 

Hatherly, Ana. Eco I / Eco II. In: __________. Rilkeana. 1. ed. Lisboa, PT: Assírio & Alvim, 1999.

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