A explorar temas como
o isolamento, a adaptação às adversidades e a perseverança, este poema de Maragall,
ao evocar a imagem melancólica e comovente de uma vaca cega que se aventura
sozinha em busca de água, remata por o fazer em conexão com a maldade humana,
pois que, em grande parte, a ablepsia do animal se deu em razão de uma pedra
que lhe foi atirada por um jovem.
O poema culmina com
uma imagem merencória da vaca elevando sua enorme cabeça rumo aos céus, num gesto
trágico – como que a apiedar-se de sua sina –, e logo o seu vago e perdido
olhar pousa sobre a linha do horizonte, regressando à solidão sob o sol
abrasador a agitar languidamente a longa cauda, enquanto vacila por “caminhos
inesquecíveis”.
J.A.R. – H.C.
Joan Maragall
(1860-1911)
La vaca cega
Topant de cap en una
i altra soca,
avançant d’esma pel
camí de l’aigua,
se’n ve la vaca tota
sola. És cega.
D’un cop de roc llançat
amb massa traça,
el vailet va
buidar-li un ull, i en l’altre
se li ha posat un
tel: la vaca és cega.
Ve a abeurar-se a la
font com ans solia,
mes no amb el ferm
posat d’altres vegades
ni amb ses companyes,
no: ve tota sola.
Ses companyes, pels cingles,
per les comes,
pel silenci dels
prats i en la ribera,
fan dringar l’esquellot,
mentre pasturen
l’herba fresca a l’atzar...
Ella cauria.
Topa de morro en l’esmolada
pica
i recula afrontada;
però torna
i abaixa el cap a l’aigua
i beu calmosa.
Beu poc, sens gaire
set. Després aixeca
al cel, enorme, l’embanyada
testa
amb un gran gesto
tràgic; parpelleja
damunt les mortes
nines, i se’n torna
orfe de llum, sota
del sol que crema,
vacil·lant pels
camins inoblidables,
brandant
llànguidament la llarga cua.
Vaca montanhesa
(James Hollis: pintor
inglês)
A vaca cega
Dando de cara num e
noutro toco,
seguindo rotineira em
busca d’água,
lá vem tão solitária
a vaca. É cega.
Com boa pontaria e
uma pedrada,
o moleque vazou-lhe
um olho, e ao outro
cobriu uma ferida: a
vaca é cega.
Da fonte vem beber,
como antes vinha,
mas não com a firmeza
de outros tempos
nem com as
companheiras: vem sozinha.
Suas colegas, por
declives, morros,
no silêncio do prado
e na ribeira,
tilintam a sineta,
enquanto pastam
a relva fresca ao
léu... Ela cairia.
Bate o nariz no
afiado bebedouro
e recua, afrontada;
mas retorna,
baixa a cabeça n’água
e bebe, calma.
Bebe pouco, sem sede.
Depois ergue
ao céu, enorme, sua
córnea testa
num grande gesto
trágico; então pisca
sobre as meninas
mortas, e se volta,
órfã de luz embaixo
do sol que arde,
palmilhando um
caminho inesquecível,
brandindo lânguida
uma cauda longa.
Referência:
MARAGALL, Joan. La
vaca cega / A vaca cega. Tradução de Fábio Aristimunho Vargas. In: VARGAS,
Fábio Aristimunho (Organização e tradução). Poesia catalã: das origens à
guerra civil. São Paulo, SP: Hedra, 2009. Em catalão: p. 85; em português: p. 84.
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