É sobre a perda, em
suas múltiplas facetas, que a poetisa se põe a refletir: por meio de situações quotidianas
e metafóricas, ilustram-se os modos pelos quais as pessoas podem privar-se de
diversas coisas em suas vidas, desde objetos físicos – como “os óculos, o emprego,
o ônibus” –, até elementos de jaez emocional ou que tais – a exemplo dos relacionamentos
interpessoais ou do suporte de valores e princípios.
A perda, decerto, é um
processo inevitável em nossas frágeis existências, atingindo-nos em diferentes
formas e magnitudes: algumas são mais brandas – como perder um isqueiro –;
outras mais trágicas, profundas e irreparáveis – como no caso de uma mãe que
perde o seu filho.
Mas nada mostra-se
mais drástico – consignemos num aparte – do que a perda da memória pelo Mal de Alzheimer,
porque se decepa a flor da correspondente haste que lhe trouxe à vida, desenraizando
irreversivelmente a árvore que provia bons frutos para longe de nossa presença,
a um desterro de silêncio e de dor.
J.A.R. – H.C.
Martha Medeiros
(n. 1961)
169. há pessoas que
perdem os óculos
há pessoas que perdem
os óculos
o emprego, o ônibus,
o fígado
rompem contratos,
noivados
perdem a estreia do
teatro
há pessoas que perdem
a viagem, os amigos
rompem o nervo
ciático
perdem a cabeça, a
deixa, a memória
faturam cachês
minguados
há pessoas que perdem
dinheiro, fazenda, anéis
a missa das seis
rompem a noite atrás
de motéis, de mulheres
que perdem o vestido,
a calcinha, o pudor
há pessoas que perdem
o valor, o isqueiro
perdem o lugar, o
sono, o poder
corrompem o amor,
perdem sua vez
há mães que perdem
seus filhos
então não há mais
nada a perder
Em: “De Cara Lavada”
(1995)
A mulher perdida
(Mebarki Imene: artista
argelo-belga)
Referência:
MEDEIROS, Martha. 169.
há pessoas que perdem os óculos. In: __________. Poesia reunida. Porto
Alegre, RS: L&PM, 2013. p. 122-123. (Coleção ‘L&PM Pocket’; v. 165)
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