A gata do poeta é uma
espécie de deidade, a julgar pelas palavras de Pitágoras, para quem o silêncio
dos céus é, na verdade, “a música das esferas”, que somente os deuses são
capazes de ouvir. E não só ouvir, no caso específico, como também ver coisas
que a nós, simples mortais, não nos sensibilizam as retinas.
De fato, uma
potestade sensitiva – esfíngica e enigmática – a desafiar a eternidade, eis que
abstraída à passagem do tempo, em conexão mais ampla com o cosmos – ainda que
afeita a comodidades, estando a relaxar sobre as estantes de livros, na provável
biblioteca pessoal do falante, usufruindo de um ambiente doméstico aquecido
pelo calefator.
J.A.R. – H.C.
Lawrence Ferlinghetti
(1919-2021)
The Cat
The cat
licks its paws and
lies down in
the bookshelf nook
She
can lie in a
sphinx position
without moving for so
many hours and then
turn her head
to me and
rise and stretch
and turn
her back to me and
lick her paw again as
if
no real time had
passed
It hasn’t
and she is the sphinx
with
all the time in the
world
in the desert of her
time
The cat
knows where flies die
sees ghosts in motes
of air
and shadows of
sunbeams
She hears
the music of the
spheres and
the hum in the wires
of houses
and the hum of the
universe
in interstellar
spaces
but
prefers domestic
places
and the hum of the
heater
Gata e seus filhotes
(Henriette
Ronner-Knip: artista belgo-holandesa)
A Gata
A gata
lambe suas patas e
deita-se no
canto da estante de
livros
Ela pode ficar
deitada numa
posição de esfinge
sem mexer-se a valer
por
muitas horas e depois
virar a cabeça
em minha direção
levantar-se e
espreguiçar-se
pondo-se então
de costas para mim
a lamber de novo sua
pata como se
nenhum tempo houvesse
passado
E de fato não passou
pois ela é uma
esfinge com
todo o tempo do mundo
no deserto de seu
tempo
A gata
sabe onde morrem as
moscas
vê fantasmas nas partículas
do ar
e sombras nos raios de
sol
Ela ouve
a música das esferas
o chirrio nos cabos
elétricos das casas
o reverberar do
universo
nos espaços interestelares
embora prefira os ambientes
domésticos
e o zumbido da
calefação
Referência:
FERLINGHETTI, Lawrence. The cat. In: __________. These are my rivers: new & selected poems 1955-1993. New York, NY: New Directions, 1993. p. 50.
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