A voz lírica
dirige-se à musa para que lhe ensine o canto – “venerável e antigo” – por todos
compreendido, com o dom de invocar aquilo que há de essencial e primordial na
natureza e na vida quotidiana – mitigadas, por conseguinte, eventuais arestas
no jogo interativo do “self” com o seu entorno –, hábil para se chegar a um
modo de expressão mais autêntico e liberto dos embargos que, no fundo da
garganta, impedem-no de fluir pelo mundo afora.
A musa é, como se
presume, a mentora para o processo criativo e fonte de inspiração para quem se
dispõe a apreender o “locus” da beleza neste vasto mundo, extensível, claro
está, ao domínio das humanas emoções – sempre reféns das contingências
temporais, que tanto nos devoram quanto nos engendram a versatilidade do verbo
poético.
J.A.R. – H.C.
Sophia de M. B. Andresen
(1919-2004)
Musa
Musa ensina-me o
canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido
Musa ensina-me o canto
O justo irmão das
coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto
Musa ensina-me o
canto
Em que eu mesma
regresso
Sem demora e sem
pressa
Tornada planta ou
pedra
Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava
(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)
Musa ensina-me o
canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o
canto
Da janela quadrada
E do quarto branco
Que eu possa dizer
como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no corpo
E como os rodeava
Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva
Musa ensina-me o
canto
Venerável e antigo
para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente os seus
dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e
branca
Musa ensina-me o
canto
Que me corta a
garganta
Em: “Livro Sexto”
(1962)
Musa
(Harisadhan Dey:
artista indiano)
Referência:
ANDRESEN, Sophia de
Mello Breyner. Musa. In: __________. Obra poética. Prefácio de Maria
Andresen Sousa Tavares. Rio de Janeiro, RJ: Tinta-da-china Brasil, 2018. p.
442-443. (Coleção ‘Grandes Escritores Portugueses’)
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