Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Ivan Junqueira - Ritual

Mais que fechar as janelas externas da casa, o falante – afligido pelo cansaço, pelo desalento e pela solidão –, fecha-se em si mesmo, com isso a buscar refrigério e paz para seu estado emocional irrequieto e fora de prumo, ainda mais inflamado pelas lembranças e preocupações que, em última instância, provocam-lhe estados de insônia.

 

Em tal mundo de reclusão não há espaço para a memória, cujas torneiras foram bloqueadas, até mesmo para se evitar as inclemências da dor e de um tempo que retroage como ondas de refluxo. Já no sentido oposto, girada a seta para o itinerário do futuro, não se pode deixar de presumir que esse distanciamento do mundo exterior resulte em renúncia a se ter uma vida mais plena de experiências e de significados, como se o ente lírico estivesse na iminência de cair sem sentido sobre os seios frios da morte.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ivan Junqueira

(1934-2014)

 

Ritual

 

Fecho as janelas desta casa

(seus corredores, seus fantasmas

sua aérea arquitetura de pássaro)

fecho a insônia que inundava

meu quarto debruçado sobre o nada

fecho as cortinas onde a larva

do tempo tece agora sua praga

fecho a clara algazarra plácida

das vozes sanguíneas da alvorada

fecho o trecho taciturno da tocata

a chuva percutindo as teclas do telhado

as sombras navegando pelo pátio

 e o bambuzal

 

Fecho as torneiras da memória

 

Fecho também a tumultuosa torrente de vida

que poderia ter rompido o cerco das paredes

e feito explodir a argamassa de calcário e solidão

 

Fecho ainda as lentas pálpebras da amada

o mofo acumulado entre seus lábios

o limo que vestiu sua carne desolada

 

Fecho tudo e depois me fecho

 

Estou cansado

 estou triste

 estou só

 

Em: “Os Mortos” (1956-1964) 

 

A Janela Fechada

(Daniela Isache: artista romena)

 

Referência:

 

JUNQUEIRA, Ivan. Ritual. In: __________. Poemas reunidos. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1999. p. 50-51.

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