Mais que fechar as
janelas externas da casa, o falante – afligido pelo cansaço, pelo desalento e pela
solidão –, fecha-se em si mesmo, com isso a buscar refrigério e paz para seu
estado emocional irrequieto e fora de prumo, ainda mais inflamado pelas
lembranças e preocupações que, em última instância, provocam-lhe estados de
insônia.
Em tal mundo de reclusão não há espaço para a memória, cujas torneiras foram bloqueadas, até mesmo para se evitar as inclemências da dor e de um tempo que retroage como ondas de refluxo. Já no sentido oposto, girada a seta para o itinerário do futuro, não se pode deixar de presumir que esse distanciamento do mundo exterior resulte em renúncia a se ter uma vida mais plena de experiências e de significados, como se o ente lírico estivesse na iminência de cair sem sentido sobre os seios frios da morte.
J.A.R. – H.C.
Ivan Junqueira
(1934-2014)
Ritual
Fecho as janelas
desta casa
(seus corredores,
seus fantasmas
sua aérea arquitetura
de pássaro)
fecho a insônia que
inundava
meu quarto debruçado
sobre o nada
fecho as cortinas
onde a larva
do tempo tece agora
sua praga
fecho a clara
algazarra plácida
das vozes sanguíneas
da alvorada
fecho o trecho
taciturno da tocata
a chuva percutindo as
teclas do telhado
as sombras navegando
pelo pátio
e o bambuzal
Fecho as torneiras da
memória
Fecho também a
tumultuosa torrente de vida
que poderia ter
rompido o cerco das paredes
e feito explodir a
argamassa de calcário e solidão
Fecho ainda as lentas
pálpebras da amada
o mofo acumulado
entre seus lábios
o limo que vestiu sua
carne desolada
Fecho tudo e depois
me fecho
Estou cansado
estou triste
estou só
Em: “Os Mortos” (1956-1964)
A Janela Fechada
(Daniela Isache:
artista romena)
Referência:
JUNQUEIRA, Ivan.
Ritual. In: __________. Poemas reunidos. Rio de Janeiro, RJ: Record,
1999. p. 50-51.
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