Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 26 de outubro de 2024

Charles Simic - Grandes enfermidades

O poeta retrata imagens vívidas e comoventes dos efeitos que uma guerra pode ter sobre um grupo de pessoas que a ela se exponha, infligindo-lhe obstáculos para enfrentar desafios, em razão das mutilações e outras restrições físicas ocasionadas pelo potente arsenal bélico em uso, agora – como nunca – a arregimentar para os campos de batalha os últimos desenvolvimentos tecnológicos e da inteligência artificial.

 

A universalidade dessas enfermidades no cenário imaginado por Simic – não só as de ordem anatômica, como também as decorrentes de eventuais cegueira e surdez – tem o condão de amplificar a sensação de isolamento a que ficam expostos os destituídos de integridade física, os quais ou bem desenvolvem perseverança e resiliência para se adaptarem a um mundo projetado para pessoas saudáveis, ou bem se resignam à ideia de dependência dos outros ou de apoio externo para seguirem em frente.

 

J.A.R. – H.C.

 

Charles Simic

(1938-2023)

 

Great infirmities

 

Everyone has only one leg.

So difficult to get around,

So difficult to climb the stairs

Without a cane or crutch to our name.

 

And only one arm. Impossible contortions

Just to embrace the one you love,

To cut the bread on the table,

To put a coat on in a hurry.

 

I should mention that we are almost blind,

And a little deaf in both ears.

Perilous to be on the street

Among the congregations of the afflicted.

 

With only a few steps committed to memory,

Meekly we let ourselves be diverted

In the endless twilight –

Blind seeing-eye dogs on our leashes.

 

An immense stillness everywhere

With the trees always bare,

The raindrops coming down only halfway,

Coming so close and giving up.

 

In: “Classic Ballroom Dances” (1990)

 

Les Invalides, Paris

(Henry Ossawa Tanner: pintor norte-americano)

 

Grandes enfermidades

 

Todos têm só uma perna.

É tão difícil evitar ou subir

Os degraus da escada, sem bengala

Ou muleta que nos sustente o nome.

 

E também só um braço. Impossíveis contorções

Para enlaçar a quem se ama,

Cortar o pão sobre a mesa,

Vestir um casaco às pressas.

 

Eu diria que somos quase cegos,

E algo surdos de ambos os ouvidos.

É perigoso andar nas ruas

Entre congregações de aflitos.

 

Com apenas alguns degraus destinados à memória,

Docilmente nos deixamos dispersar

No crepúsculo sem fim: cães

De olhos vazios em nossas correntes.

 

Uma imensa quietude em toda parte

Com as árvores sempre nuas,

Os pingos da chuva a cair só pela metade,

A cair tão próximos e tão desamparados.

 

Em: “Danças de Salão Clássicas” (1990)

 

Referência:

 

SIMIC, Charles. Great infirmities / Grandes enfermidades. Tradução de Ivan Junqueira. Poesia sempre:  revista semestral de poesia. Publicação da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (RJ), ano 2, n. 3, fev. 1994. Em inglês: p. 50; em português: p. 51.

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