Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Abgar Renault - S.O.S.

Muitas são as questões suscitadas por Renault neste poema, desde as ambições explicativas da ciência e de todo o edifício do conhecimento técnico sobre o nosso universo – cada vez mais explorado e quantificado –, passando pelo indefectível avanço da tecnologia, chegando até mesmo ao tema dos fundamentos ontológicos do ser e do viver, ou talvez melhor, das premissas conexas aos nossos esforços para atribuir sentidos mais persuasivos à faina em que imersos estamos.

 

Mas o fato é que há muito mais elementos à nossa volta do que aqueles que são capazes de ser capturados pela razão e pela abordagem determinista e preditiva da ciência, a exemplo das abundantes manifestações de beleza sobre a terra, como a das flores – que desabrocham por toda parte –, mesmo entre “roxas rochas”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Abgar Renault

(1901-1995)

 

S.O.S.

 

Fitos no tema evanescente

um sextante, um astrolábio,

penetrantíssimo radar,

o minudente microscópio,

o eletrônico telescópio,

não-euclidianas geometrias,

diversas sutis matemáticas,

consideradamente olhamos,

pedimos, conhecemos, pomos

o firmamento e os seus subúrbios

de indizíveis azuis e sóis

numa folha quadriculada;

quantificadamente exatos

em altura, profundidade,

som, cheiro, luz, sabor e tato,

céu, animais, homens e mares

são sinais e pálidos números

de sábia contabilidade;

Deus jaz expulso do universo

pela física nuclear;

diante do bem, diante do mal,

a humana inteligência é neutra

como o deserto chão da lua,

da lua shakespeariana (O sovereign

mistress of true melancholy)

– ai! posto de abastecimento

de imberbes naves espaciais:

a vida está decifradíssima,

tudo é sabido, claro e sólido:

prévios, fatais, computadores,

em célere nanossegundo,

desenharão teu traje de ar,

escolherão teu casamento

e, após ele, teus adultérios,

e predirão os teus orgasmos,

teus fracassos, as gravidezes,

as pílulas indispensáveis,

a tua queda e fim geral,

– teu câncer, ano, dia e hora

do teu enterro triunfal.

 

Nas profundezas atiremos

Max Planck, Einstein, Heisenberg,

suas seguranças geométricas

e algébricas lucubrações.

Apenas, como salvação

ou fugitivas reticências,

saibamos misteriosamente

leve flor entre roxas rochas.

 

(26.12.70)

Em: “Sofotulafai” (1971)

Poema da série “Cristal Refratário”

 

Escada para o céu

(Anne Weirich: artista alemã)

 

Nota:

 

(*). “Ó soberana senhora da verdadeira melancolia”, palavras de Enobarbo na Cena 9 do Ato 4, de “Antônio e Cleópatra”, de William Shakespeare.

 

Referência:

 

RENAULT, Abgar. S.O.S. In: __________. Obra poética. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1990. p. 156-157.

Nenhum comentário:

Postar um comentário