Muitas são as questões
suscitadas por Renault neste poema, desde as ambições explicativas da ciência e
de todo o edifício do conhecimento técnico sobre o nosso universo – cada vez
mais explorado e quantificado –, passando pelo indefectível avanço da
tecnologia, chegando até mesmo ao tema dos fundamentos ontológicos do ser e do viver,
ou talvez melhor, das premissas conexas aos nossos esforços para atribuir
sentidos mais persuasivos à faina em que imersos estamos.
Mas o fato é que há
muito mais elementos à nossa volta do que aqueles que são capazes de ser capturados
pela razão e pela abordagem determinista e preditiva da ciência, a exemplo das abundantes
manifestações de beleza sobre a terra, como a das flores – que desabrocham por
toda parte –, mesmo entre “roxas rochas”.
J.A.R. – H.C.
Abgar Renault
(1901-1995)
S.O.S.
Fitos no tema
evanescente
um sextante, um
astrolábio,
penetrantíssimo
radar,
o minudente
microscópio,
o eletrônico
telescópio,
não-euclidianas geometrias,
diversas sutis
matemáticas,
consideradamente
olhamos,
pedimos, conhecemos,
pomos
o firmamento e os
seus subúrbios
de indizíveis azuis e
sóis
numa folha
quadriculada;
quantificadamente
exatos
em altura,
profundidade,
som, cheiro, luz,
sabor e tato,
céu, animais, homens
e mares
são sinais e pálidos
números
de sábia
contabilidade;
Deus jaz expulso do
universo
pela física nuclear;
diante do bem, diante
do mal,
a humana inteligência
é neutra
como o deserto chão
da lua,
da lua shakespeariana
(O sovereign
mistress of true
melancholy)
– ai! posto de
abastecimento
de imberbes naves
espaciais:
a vida está
decifradíssima,
tudo é sabido, claro
e sólido:
prévios, fatais,
computadores,
em célere nanossegundo,
desenharão teu traje
de ar,
escolherão teu
casamento
e, após ele, teus
adultérios,
e predirão os teus
orgasmos,
teus fracassos, as
gravidezes,
as pílulas
indispensáveis,
a tua queda e fim
geral,
– teu câncer, ano,
dia e hora
do teu enterro
triunfal.
Nas profundezas
atiremos
Max Planck, Einstein,
Heisenberg,
suas seguranças
geométricas
e algébricas
lucubrações.
Apenas, como salvação
ou fugitivas
reticências,
saibamos
misteriosamente
leve flor entre roxas
rochas.
(26.12.70)
Em: “Sofotulafai” (1971)
Poema da série
“Cristal Refratário”
Escada para o céu
(Anne Weirich:
artista alemã)
Nota:
(*). “Ó soberana
senhora da verdadeira melancolia”, palavras de Enobarbo na Cena 9 do Ato 4, de
“Antônio e Cleópatra”, de William Shakespeare.
Referência:
RENAULT, Abgar. S.O.S.
In: __________. Obra poética. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1990. p.
156-157.
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