Com título a se
associar diretamente ao Gênesis 3:19, o poeta declina suas profundas
lucubrações acerca da natureza das palavras, do sentido da vida e da íntima
relação entre o ser humano e a natureza, sublinhando a importância de se
encontrar significado no simples e no autêntico, ou mesmo de se valorizar a
introspecção e a conexão emocional em um mundo obcecado por grandeza e domínio.
A verdadeira
sabedoria pode ser encontrada em meio à gente humilde, como os obreiros que trabalham
a terra, também repletos de sonhos que afloram da humana “argila” de que
compostos – como o próprio falante –, que se expressam em palavras simples e
autênticas vindas do coração, pois que, do contrário, vazias de significado,
sendo preferível o silêncio.
J.A.R. – H.C.
Thiago de Mello
(1926-2022)
O sonho da argila
O vocábulo puro, em
que me amparo,
esquiva-se a meu
jugo; e raro canto.
Que a palavra da boca
é sempre inútil
se o sopro não lhe
vem do coração.
Mudo, contemplo os
valerosos feitos
de quem funda
caminhos sobre os mares
e edifica cidades e
ergue torres
de cujo topo logre
dominar
o mundo inteiro – e
ver que o mundo é pouco.
Antes os que, cegos,
trabalham a terra,
sorvendo-lhe os
tesouros mais esconsos,
sem assombro, no
convívio dos bois,
com eles aprendendo a
ser humildes,
e dormem, vinda a
noite, sossegados,
– permaneço calado, e
todavia
algo em mim lhes
inveja esse dormir.
Não me pranteio por
saber-me turvo
ou por não me caber a
paz dos brutos.
Sei que morro amanhã,
mas não me louvo
a sóbria face que
disfarça o medo.
Move-me ao canto ver
que a sombra cresce
dentro de mim,
enquanto um sol avaro
esplende oculto – em
céus só vislumbrados
quando a argila, grotesca
e ousada, sonha.
E ver o inútil dessa
argila em sonho,
mais que mover-me ao
canto, me comove.
A Criação do Homem
(Manasseh Johnson:
artista norte-americano)
Referência:
MELLO, Thiago de. O
sonho da argila. In: BANDEIRA, Manuel (Ed.). Apresentação da poesia
brasileira. Posfácio de Otto Maria Carpeaux. São Paulo, SP: Cosac Naify,
2009. p. 451-452.
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