A retratar os anjos de
um modo inusitado e sugestivo, este poema de Rilke descreve-os como tendo “lábios
cansados” e “almas brilhantes sem orlas”, espelhando, a um só tempo, a previsível
forma de pureza e de transcendência, conjugada a algum desgaste ou fadiga, como
se cansados de seu papel de intermediários entre o divino e o mundo.
Como partes
integrantes do vasto plano de Deus, os anjos preenchem os espaços entre as notas
do Criador, esse escultor a moldar o mundo por meio daqueles “despertadores de
vento” – um conceito que, como sabemos, ressoa a valer em nossa tradição
religiosa –, isto quando os anjos não resolvem ascender a alturas nunca dantes
descortinadas...
É que há algo nos
versos do poeta a insuflar a ideia de que os anjos experimentam anseios que, em
certo sentido, assemelham-se à busca por pecado, revelando-lhes um desejo
inerente, que lhes é próprio – ainda que, em essência, sejam eles celestiais –,
como se reconhecessem que têm o potencial – “humano, demasiado humano” – para
seguirem o mesmo caminho trilhado por Satã!
J.A.R. – H.C.
Rainer Maria Rilke
(1875-1926)
Die Engel
Sie haben alle müde
Münde
und helle Seelen ohne
Saum.
Und eine Sehnsucht
(wie nach Sünde)
geht ihnen manchmal
durch den Traum.
Fast gleichen sie
einander alle;
in Gottes Gärten
schweigen sie,
wie viele, viele
Intervalle
in seiner Macht und
Melodie.
Nur wenn sie ihre
Flügel breiten,
sind sie die Wecker
eines Winds:
als ginge Gott mit
seinen weiten
Bildhauerhänden durch
die Seiten
im dunklen Buch des
Anbeginns.
In: “Das Buch der
Bilder” (1902 und 1906)
Cupido e Psiquê,
infantes
(William-Adolphe
Bouguereau: pintor francês)
Os Anjos
Têm todos bocas
cansadas
e almas claras, sem
orla.
E passa-lhes por
vezes pelos sonhos
uma saudade (como de
pecado).
Parecem-se quase
todos uns aos outros;
estão calados nos
jardins de Deus,
como muitos, muitos
intervalos
no seu poderio e
melodia.
Só quando desdobram
as asas
é que despertam qualquer
vento:
como se Deus, com as
suas largas
mãos de estatuário,
passasse
as folhas do escuro
Livro dos Princípios.
Em: “O Livro das
Imagens” (1902 e 1906)
Referências:
Em Alemão
RILKE, Rainer Maria.
Die engel. In: __________. Gesammelte gedichte. Frankfurt am Main, DE: Insel-Verlag,
1962. s. 136-137.
Em Português
RILKE, Rainer Maria. Os anjos. Tradução de Paulo Quintela. In: QUINTELA, Paulo. Obras completas. Vol. 3: Traduções II. Introdução de Ludwig Scheidl. Organização de Ludwig Scheidl et alii, 1. ed. Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian; Serviço de Educação, 1998. p. 64.
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