Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Antonio Gamoneda - Incandescência e ruínas

Em um mundo aparentemente despojado de valores, o falante sai em busca de algo que faça diferença a partir de um quê profundo, subterrâneo, misterioso, capaz de lhe permitir apreciar a pureza em meio à vida tumultuosa, o essencial e o inquebrantável nas entrelinhas do caótico.

 

Sofrimento e dor são assimilados pela via de um ritual interno, a impactar o estado de consciência, consciência que nem sempre se mostra hábil para apreender certos pensamentos complexos e, amiúde, de difícil intelecção, tanto mais quando o poder das palavras não possui a suficiente magnitude para desenredá-los satisfatoriamente.

 

Ao fim e ao cabo, uma espécie de rechaço ao amor, fundamentado na percepção de que o contexto não revela nada que valha a pena, de que o cenário difunde tintas de vazio e de desolação – um mundo em ruínas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Antonio Gamoneda

(n. 1931)

 

Incandescencia y ruinas

 

I

 

Yo invoco la cabeza

más sagrada que exista

debajo de la nieve.

 

Mi corazón azul

canta purificado por el silencio.

 

II

 

Vándalo de pureza,

hostígame. Si hablas,

yo bajaré mis labios

hasta el agua salvaje.

 

De aquella gruta donde

abrasa la frescura,

ha de surgir un rey

sucio de profecías.

 

Oh corazón que ves

en toda oscuridad,

cuándo estaremos ciegos

en luz, cuándo hablarás,

habitante del fuego.

 

III

 

Un perro milagroso

come en mi corazón.

 

Ceremonia salvaje:

mi dolor se incorpora

al perro enamorado.

 

IV

 

En la cavidad que sabes,

suena una voz. Lengua fría,

tú, que silbas en la noche,

metal vivo de palabras,

dime, loco ruiseñor

del invierno, dime, tú,

que quizá participas

de una materia luminosa,

a quién anuncias ya

además de a la muerte.

 

V

 

Anticanto de amor,

quién te beberá, quién

pondrá la boca en esta

espuma prohibida.

 

Quién, qué dios, qué

enloquecidas alas

podrán venir, amar

aquí.

 

Donde no hay nada.

 

Ruínas sob a neve

(François Hurtubise: artista canadense)

 

Incandescência e ruínas

 

I

 

Invoco a cabeça

mais sagrada que exista

sob a neve.

 

Meu coração azul

canta purificado pelo silêncio.

 

II

 

Vândalo de pureza,

fustiga-me. Se falas,

inclinarei meus lábios

até a água selvagem.

 

Daquela gruta onde

abrasa o frescor,

há de surgir um rei

sujo de profecias.

 

Ó coração que vês

em toda escuridão,

à altura em que cegos estaremos

perante a luz – quando falarás,

habitante do fogo.

 

III

 

Um cão milagroso

come em meu coração.

 

Cerimônia selvagem:

minha dor se incorpora

ao cão apaixonado.

 

IV

 

Na cavidade que conheces,

soa uma voz. Língua fria,

tu, que silvas na noite,

metal vivo de palavras,

diz-me, louco rouxinol

do inverno, diz-me, tu,

que talvez partilhes

de uma matéria luminosa,

a quem já anuncias

para além da morte.

 

V

 

Anticanto de amor,

quem te beberá, quem

porá a boca nesta

espuma proibida.

 

Quem, que deus, que

enlouquecidas asas

poderão vir, amar

aqui.

 

Onde não há nada.

 

Referência:

 

GAMONEDA, Antonio. Incandescencia y ruinas. In: __________. Esta luz: poesía reunida (1947-2004). Epílogo de Miguel Casado. Barcelona, ES: Círculo de Lectores / Galaxia Gutenberg, 2004. p. 636-638.

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