Um mandarim envolto
na multiplicidade de experiências, em sua busca de significado e
transcendência, empreende ações diversas sobre uma cama com espelhos, de onde
se inferem as dimensões simbólicas de autorreflexão e de contemplação do
próprio ser em suas múltiplas facetas, lançando-o para além dos aspectos
mundanos da vida – o sentido erótico, obviamente, aí incluso –, das luzes
contrastantes de cima e de baixo, ou ainda, das forças interagentes e
contrapostas do yin e do yang, perdidas na origem da existência.
A rigor, adquirida por
Rojas na China, o leito com espelhos, a desencadear imagens vívidas e tons
filosóficos na mente do poeta, presta-se a dar ênfase ao quanto de mistério há
no mundo não captado pelo olhar humano, ou mesmo, a nos incitar a não ignorarmos
o espesso verniz de indefinição de nossas verdades últimas.
J.A.R. – H.C.
Gonzalo Rojas
(1916-2011)
Cama con espejos
Ese mandarín hizo de
todo en esta cama con espejos, con dos espejos:
hizo el amor, tuvo la
arrogancia
de creerse inmortal,
y tendido aquí miró su rostro por los pies,
y el espejo de abajo
le devolvió el rostro de lo visible;
así desarrolló una
tesis entre dos luces: el de arriba
contra el de abajo, y
acostado casi en el aire
llegó a la
construcción de su gran vuelo de madera.
La estridencia de los
días y el polvo seco del funcionario
no pudieron nada
contra el encanto portentoso:
ideogramas carnales,
mariposas de alambre distinto, fueron muchas y muchas
las hijas del cielo
consumidas entre las llamas
de aquestos dos
espejos lascivos y sonámbulos
dispuestos en lo
íntimo de dos metros, cerrados el uno contra el otro:
el uno para que el
otro le diga al otro que el Uno es el Principio.
Ni el yin ni el yang,
ni la alternancia del esperma y de la respiración
lo sacaron de esta
liturgia, las escenas eran veloces
en la inmovilidad del
paroxismo: negro el navío navegaba
lúcidamente en sus
aceites y el velamen de sus barnices,
y una corriente de
aire de ángeles iba de lo Alto a lo Hondo
sin reparar en que lo
Hondo era lo Alto para el seso
del mandarín. Ni el
yin ni el yang, y esto se pierde en el Origen.
Pekín, 1971
Diante do Espelho
(Édouard Manet:
pintor francês)
Cama com espelhos
Esse mandarim fez de tudo
nesta cama com espelhos, com dois espelhos:
fez amor, teve a
arrogância
de se crer imortal, e
estendido aqui olhou seu rosto pelos pés,
e o espelho de baixo
devolveu a ele o rosto do visível;
assim desenvolveu uma
tese entre duas luzes: o de cima
contra o de baixo, e
deitado quase no ar
chegou à construção
de seu grande voo de madeira.
A estridência dos
dias e o pó seco do funcionário
não conseguiram nada
contra o encanto portentoso:
ideogramas carnais,
borboletas de arame distinto, foram muitas e muitas
as filhas do céu
consumidas entre as chamas
destes dois espelhos
lascivos e sonâmbulos
dispostos no íntimo
de dois metros, fechados um contra o outro:
um para que o outro
diga ao outro que o Um é o Princípio.
Nem o yin nem o yang,
nem a alternância do esperma e da respiração
o tiraram desta
liturgia, as cenas eram velozes
na imobilidade do
paroxismo: negro o navio navegava
lucidamente em seus
óleos e no velame de seus vernizes,
e uma corrente de ar
de anjos ia do Alto ao Fundo
sem reparar que o
Fundo era o Alto para os miolos
do mandarim. Nem o
yin nem o yang, e isto se perde na Origem.
Pequim, 1971
Referência:
ROJAS, Gonzalo. Cama
con espejos / Cama com espelhos. Tradução de Eric Nepomuceno. In: __________. Antologia
poética de Gonzalo Rojas. Tradução de Eric Nepomuceno. Edição bilíngue:
Espanhol x Português. Brasília, DF: Editora da UnB, 2018. Em espanhol: p. 66;
em português: p. 67. Disponível neste endereço. Acesso em: 28 jul.
2024.
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