Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 25 de agosto de 2024

John Montague - Deixar

O poeta irlandês propõe-nos a questão do que representaria deixarmos de ser humanos, cessando de viver a única vida de que estamos cientes, tentando ser donos de nossos próprios destinos: em vez de buscarmos autodeterminação no mundo, por que não nos expormos às suas vontades e aos seus caprichos, nem que seja para conhecermos como o tempo afeta os objetos – naturais ou artificiais, quedos ou inorgânicos – à nossa volta, apartados que estão de quaisquer ponderações de ordem axiológica?!

 

Veja-se que o título sugere a conduta de parar, de deter, de pôr fim a um determinado modo de pensar ou de agir, sendo o poema dedicado ao dramaturgo Samuel Beckett (1906-1989) – irlandês como Montague –, bastante conhecido por explorar temas existenciais e filosóficos em suas obras, com aquele seu peculiar pessimismo acerca do fenômeno humano.

 

Com alguma conexão com o mote do poema, lembrei-me do artigo “Como é ser um morcego?”, por meio do qual o filósofo sérvio Thomas Nagel (n. 1937) nos incita a especular sobre experiências com as quais jamais entraremos em contato direto, por exemplo, como seria “enxergar” uma coisa com os ouvidos, uma vez que os morcegos têm o dom da ecolocalização que nós, humanos, não possuímos?!... Em linha com Nagel: “Como é ser uma árvore?”, nos indagaria o poeta!

 

J.A.R. – H.C.

 

John Montague

(1929-2016)

 

To cease

 

for Samuel Beckett

 

To cease

to be human.

 

To be

a rock down

which rain pours,

a granite jaw

slowly discoloured.

 

Or a statue

sporting a giant’s beard

of verdigris or rust

in some forgotten

village square.

 

A tree worn

by the prevailing winds

to a diagram of

tangled branches:

gnarled, sapless, alone.

 

To cease

to be human

and let birds soil

your skull, animals rest

in the crook of your arm.

 

To become

an object, honoured

or not, as the occasion demands;

while time bends you slowly

back to the ground.

 

A praça da aldeia

(Frank Thompson: artista inglês)

 

Deixar

 

A Samuel Beckett

 

Deixar

de ser humano.

 

Ser

uma pedra por onde

a chuva resvala,

um cânion de granito

a descolorir lentamente.

 

Ou uma estátua

a ostentar uma barba de gigante

erodida por azinhavre ou ferrugem

em alguma esquecida

praça de aldeia.

 

Uma árvore desgastada

pelos ventos dominantes

reduzida a um diagrama de

galhos emaranhados:

retorcida, desseivada, solitária.

 

Deixar

de ser humano

e permitir que os pássaros sujem

teu crânio, os animais pousem

na dobra de teu braço.


Tornar-te

um objeto, honrado

ou não, a depender da ocasião;

enquanto o tempo te inclina lentamente

de volta à terra.

 

Referência:

 

MONTAGUE, John. To cease. In: __________. Selected poems. Toronto, CA: Exile Editions, 1991. p. 73.

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