Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Donald Justice - A Satã no Céu

O poeta desafia as convenções e elabora uma invocação a Satã, num inusitado expediente para sugerir que até o mal personificado pode representar uma busca por liberdade e expressão pessoal, dando vazão às insatisfações ante um estagnado estado de coisas, ou mesmo pelo simples desejo de escapar aos confins do estabelecido, num mundo que, amiúde, compraz-se em impor um vasto cabedal de normas e restrições.

 

A estrutura do poema, a abranger prece, compunção e súplica por perdão, muito lembra a forma dos atos de contrição no Sacramento de Penitência da Igreja Católica, obviamente com a permuta do destinatário: se o não desviar-se do reto caminho deve ser a regra para o cristão – em atenção aos mandamentos divinos –, os versos preconizam enveredar por outro caminho, a saber, o desvio dos preceitos estabelecidos, não necessariamente um ato malicioso, senão uma manifestação do livre alvedrio, da própria individualidade, do rechaço a um conformismo estéril e paralisante.

 

J.A.R. – H.C.

 

Donald Justice

(1925-2004)

 

To Satan in Heaven

 

Forgive, Satan, virtue’s pedants, all such

As have broken our habits, or had none,

The keepers of promises, prizewinners,

Meek as leaves in the wind’s circus, evenings;

Our simple wish to be elsewhere forgive,

Shy touchers of library atlases,

Envious of bird-flight, the whale’s submersion;

And us forgive who have forgotten how,

The melancholy who, lacing a shoe,

Choose not to continue, the merely bored,

Who have modeled our lives after cloud-shapes;

For which confessing, have mercy on us,

The different and the indifferent,

In inverse proportion to our merit,

For we have affirmed thee secretly, by

Candle-glint in the polish of silver,

Between courses, murmured amenities,

See thee in mirrors by morning, shaving,

Or head in loose curls on the next pillow,

Reduced thee to our own scope and purpose,

Satan, who, though in heaven, downward yearned,

As the butterfly, weary of flowers,

Longs for the cocoon or the looping net.

 

Representação de Satã para

“O Paraíso Perdido” de John Milton

(Gustave Doré: gravurista francês)

 

A Satã no Céu

 

Perdoa, Satã, os pedantes da virtude, todos os que

Quebraram os nossos hábitos, ou não os tinham,

Os guardiões das promessas, os honrados com prêmios,

Dóceis como folhas ao balé do vento, nos ocasos;

Perdoa o nosso simples desejo de estar noutro lugar,

Tímidos compulsadores de atlas em bibliotecas,

Ávidos pelo voo dos pássaros, pela imersão das baleias;

E perdoa-nos por esquecermos de como isso se passa:

Os melancólicos que, atando o cadarço do sapato,

Optam por não prosseguir; os meramente entediados,

Que modelaram nossas vidas sob a forma de nuvens;

Pelo que, contritos, rogamos que tenhas piedade de nós,

Os diferentes e os indiferentes,

Em proporção inversa ao nosso mérito,

Pois que te aclamamos em segredo,

Ao cintilar de velas sobre o lustro de prata,

Entre repastos, amenidades murmuradas.

Vemos-te nos espelhos pela manhã, afeitando-te,

Ou com as melenas ao natural no travesseiro ao lado,

Por nós reduzido ao nosso próprio escopo e propósito:

Satã, que, embora no céu, aspirava por decair,

Como a borboleta, enfadada das flores,

Anseia pelo casulo ou pela textura anelada.

 

Referência:

 

JUSTICE, Donald. To satan in heaven. In: HOPLER, Jay; JOHNSON, Kimberly (Eds.). Before the door of God: an anthology of devotional poetry. New Haven, CT: Yale University Press, 2013. p. 322-323.

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