O poeta desafia as
convenções e elabora uma invocação a Satã, num inusitado expediente para
sugerir que até o mal personificado pode representar uma busca por liberdade e expressão
pessoal, dando vazão às insatisfações ante um estagnado estado de coisas, ou
mesmo pelo simples desejo de escapar aos confins do estabelecido, num mundo
que, amiúde, compraz-se em impor um vasto cabedal de normas e restrições.
A estrutura do poema,
a abranger prece, compunção e súplica por perdão, muito lembra a forma dos atos
de contrição no Sacramento de Penitência da Igreja Católica, obviamente com a
permuta do destinatário: se o não desviar-se do reto caminho deve ser a regra para
o cristão – em atenção aos mandamentos divinos –, os versos preconizam enveredar
por outro caminho, a saber, o desvio dos preceitos estabelecidos, não necessariamente
um ato malicioso, senão uma manifestação do livre alvedrio, da própria individualidade,
do rechaço a um conformismo estéril e paralisante.
J.A.R. – H.C.
Donald Justice
(1925-2004)
Forgive, Satan, virtue’s pedants, all such
As have broken our habits, or had none,
The keepers of promises, prizewinners,
Meek as leaves in the wind’s circus, evenings;
Our simple wish to be elsewhere forgive,
Shy touchers of library atlases,
Envious of bird-flight, the whale’s submersion;
And us forgive who have forgotten how,
The melancholy who, lacing a shoe,
Choose not to continue, the merely bored,
Who have modeled our lives after cloud-shapes;
For which confessing, have mercy on us,
The different and the indifferent,
In inverse proportion to our merit,
For we have affirmed thee secretly, by
Candle-glint in the polish of silver,
Between courses, murmured amenities,
See thee in mirrors by morning, shaving,
Or head in loose curls on the next pillow,
Reduced thee to our own scope and purpose,
Satan, who, though in heaven, downward yearned,
As the butterfly, weary of flowers,
Longs for the cocoon or the looping net.
Representação de Satã
para
“O Paraíso Perdido”
de John Milton
(Gustave Doré:
gravurista francês)
A Satã no Céu
Perdoa, Satã, os
pedantes da virtude, todos os que
Quebraram os nossos
hábitos, ou não os tinham,
Os guardiões das
promessas, os honrados com prêmios,
Dóceis como folhas ao
balé do vento, nos ocasos;
Perdoa o nosso
simples desejo de estar noutro lugar,
Tímidos compulsadores
de atlas em bibliotecas,
Ávidos pelo voo dos
pássaros, pela imersão das baleias;
E perdoa-nos por
esquecermos de como isso se passa:
Os melancólicos que,
atando o cadarço do sapato,
Optam por não prosseguir;
os meramente entediados,
Que modelaram nossas
vidas sob a forma de nuvens;
Pelo que, contritos, rogamos
que tenhas piedade de nós,
Os diferentes e os
indiferentes,
Em proporção inversa
ao nosso mérito,
Pois que te aclamamos
em segredo,
Ao cintilar de velas sobre
o lustro de prata,
Entre repastos, amenidades
murmuradas.
Vemos-te nos espelhos
pela manhã, afeitando-te,
Ou com as melenas ao
natural no travesseiro ao lado,
Por nós reduzido ao
nosso próprio escopo e propósito:
Satã, que, embora no
céu, aspirava por decair,
Como a borboleta, enfadada
das flores,
Anseia pelo casulo ou
pela textura anelada.
Referência:
JUSTICE, Donald. To satan in heaven. In: HOPLER, Jay; JOHNSON, Kimberly (Eds.). Before the door of God: an anthology of devotional poetry. New Haven, CT: Yale University Press, 2013. p. 322-323.
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