Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Vladimir Nabokov - Fogo Pálido: Canto Quarto (Excerto)

Nabokov detém-se neste excerto do Canto Quarto de “Fogo Pálido” (“Pale Fire”), de 1962, a esquadrinhar o fascinante mundo do processo criativo, seus desafios e recompensas, atinentes aos dois distintos métodos ou abordagens adotados para se compor poesia: o método “A”, segundo o qual o poeta “escreve” os poemas mentalmente sem caneta e papel, e o método “B”, em que redige os poemas mediante o emprego de ferramentas tradicionais.

 

O método “A”, como se nota, é menos convencional, não estruturado e espontâneo, com o poeta a compor mentalmente os versos, enquanto se envolve em atividades mundanas. Digo melhor: a abordagem parece exigir uma figura semelhante a uma musa, a dirigir o processo com uma força implacável e intrusiva. Daí porque flui como se fosse uma luta intensa, árdua, caótica até, com os pensamentos e palavras do poeta sendo controlados por forças externas, deixando pouco espaço a uma intervenção consciente. Ou seja: muitos desafios e, talvez, menos gratificação.

 

Com efeito, a necessidade de o poeta fazer malabarismos com várias tarefas simultaneamente, como escolher rimas, relembrar tentativas anteriores e manter as linhas em evolução em sua mente, aumenta a dificuldade de compor sem ferramentas físicas.

 

No que tange ao método “B”, implica um processo mais disciplinado, organizado e habitual, permitindo uma escrita mais uniforme, deliberada e controlada, podendo o poeta pausar, corrigir e revisar seu trabalho com mais facilidade e precisão.

 

Independentemente do método escolhido, o poema também aborda o que se passa naqueles momentos de inspiração ou de intuição que surgem durante o processo de composição das peças líricas: como se fora um mistério, o poeta, exausto demais para dar continuidade ao trabalho, encontra a palavra certa sem esforço deliberado, como se guiado por uma força invisível – circunstância que reforça a natureza inefável e espontânea da criatividade, cujo brilho pode surgir espontaneamente.

 

J.A.R. – H.C.

 

Vladimir Nabokov

(1899-1977)

 

Canto Four

Now I shall spy on beauty as none has

Spied on it yet. Now I shall cry out as

None has cried out. Now I shall try what none

Has tried. Now I shall do what none has done.

And speaking of this wonderful machine:

I’m puzzled by the difference between

Two methods of composing: A, the kind

Which goes on solely in the poet’s mind,

A testing of performing words, while he

Is soaping a third time one leg, and B,

The other kind, much more decorous, when

He’s in his study writing with a pen.

 

In method B the hand supports the thought,

The abstract battle is concretely fought.

The pen stops in mid-air, then swoops to bar

A canceled sunset or restore a star,

And thus it physically guides the phrase

Toward faint daylight through the inky maze.

But method A is agony! The brain

Is soon enclosed in a steel cap of pain.

A muse in overalls directs the drill

Which grinds and which no effort of the will

Can interrupt, while the automaton

Is taking off what he has just put on

Or walking briskly to the corner store

To buy the paper he has read before.

 

Why is it so? Is it, perhaps, because

In penless work there is no pen-poised pause

And one must use three hands at the same time

Having to choose the necessary rhyme,

Hold the completed line before one’s eyes,

And keep in mind all the preceding tries?

Or is the process deeper with no desk

To prop the false and hoist the poetesque?

For there are those mysterious moments when

Too weary to delete, I drop my pen;

I ambulate – and by some mute command

The right word flutes and perches on my hand.

 

O Mestre da Escrita

(Thomas Eakins: pintor norte-americano)

 

Canto Quarto

 

Eu falarei agora da beleza

Como ninguém falou. Hei de chorar

Como ninguém chorou, e tentarei

O que ninguém tentou. Farei o que

Ninguém fez. E, falando nessa máquina

Maravilhosa, sempre me intrigaram

As diferenças entre duas formas

De compor: a primeira ocorre apenas

Na mente do poeta, ao ensaiar

As palavras enquanto se ensaboa.

A outra, bem mais decorosa, quando

Empunha a pena e escreve em seu estúdio.

 

Neste segundo tipo, a mão sustenta

O pensamento, e o que é batalha abstrata

Se faz concreta quando a pena estaca

Em pleno voo e, num mergulho, apaga

O pôr-do-sol ou recompõe a estrela,

Guiando assim, fisicamente, a frase

Em meio ao labirinto de rasuras.

Mas o primeiro é angústia! Todo o cérebro

Se reveste de dor e, autoritária,

A Musa assume o mando do exercício.

A vontade é impotente: o pobre autômato

Despe o que acaba de vestir, ou corre

Para comprar na banca ali na esquina

O jornal que já leu. Por que razão?

 

Talvez porque, compondo de memória,

haja a pausa da caneta e cumpra

Utilizar três mãos ao mesmo tempo:

Uma escolhendo a rima necessária,

Outra empunhando o verso terminado

E a terceira arquivando as variantes.

Ou será que o processo é mais profundo

Sem instrumento que preserve o falso?

Pois há momentos mágicos em que

Descanso a pena, deambulo – e, ouvindo

Algum mudo comando, o termo exato

Esvoaça e vem pousar na minha mão.

 

Referências:

 

Em Inglês

 

NABOKOV, Vladimir. Pale fire: canto four (excerpt). New York, NY: Lancer Books, 1963. p. 45-46.

 

Em Português

 

NABOKOV, Vladimir. Fogo pálido: canto quarto (excerto). Tradução de Jorio Dauster e Sérgio Duarte. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1989. p. 49-50.

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