Nabokov detém-se
neste excerto do Canto Quarto de “Fogo Pálido” (“Pale Fire”), de 1962, a
esquadrinhar o fascinante mundo do processo criativo, seus desafios e
recompensas, atinentes aos dois distintos métodos ou abordagens adotados para
se compor poesia: o método “A”, segundo o qual o poeta “escreve” os poemas
mentalmente sem caneta e papel, e o método “B”, em que redige os poemas
mediante o emprego de ferramentas tradicionais.
O método “A”, como se
nota, é menos convencional, não estruturado e espontâneo, com o poeta a compor
mentalmente os versos, enquanto se envolve em atividades mundanas. Digo melhor:
a abordagem parece exigir uma figura semelhante a uma musa, a dirigir o
processo com uma força implacável e intrusiva. Daí porque flui como se fosse
uma luta intensa, árdua, caótica até, com os pensamentos e palavras do poeta
sendo controlados por forças externas, deixando pouco espaço a uma intervenção
consciente. Ou seja: muitos desafios e, talvez, menos gratificação.
Com efeito, a necessidade
de o poeta fazer malabarismos com várias tarefas simultaneamente, como escolher
rimas, relembrar tentativas anteriores e manter as linhas em evolução em sua
mente, aumenta a dificuldade de compor sem ferramentas físicas.
No que tange ao método
“B”, implica um processo mais disciplinado, organizado e habitual, permitindo
uma escrita mais uniforme, deliberada e controlada, podendo o poeta pausar,
corrigir e revisar seu trabalho com mais facilidade e precisão.
Independentemente do
método escolhido, o poema também aborda o que se passa naqueles momentos de inspiração
ou de intuição que surgem durante o processo de composição das peças líricas:
como se fora um mistério, o poeta, exausto demais para dar continuidade ao
trabalho, encontra a palavra certa sem esforço deliberado, como se guiado por
uma força invisível – circunstância que reforça a natureza inefável e
espontânea da criatividade, cujo brilho pode surgir espontaneamente.
J.A.R. – H.C.
Vladimir Nabokov
(1899-1977)
Canto Four
Now I shall spy on
beauty as none has
Spied on it yet. Now
I shall cry out as
None has cried out.
Now I shall try what none
Has tried. Now I
shall do what none has done.
And speaking of this
wonderful machine:
I’m puzzled by the
difference between
Two methods of
composing: A, the kind
Which goes on solely
in the poet’s mind,
A testing of
performing words, while he
Is soaping a third
time one leg, and B,
The other kind, much
more decorous, when
He’s in his study
writing with a pen.
In method B the hand
supports the thought,
The abstract battle
is concretely fought.
The pen stops in
mid-air, then swoops to bar
A canceled sunset or
restore a star,
And thus it physically
guides the phrase
Toward faint daylight
through the inky maze.
But method A is
agony! The brain
Is soon enclosed in a
steel cap of pain.
A muse in overalls
directs the drill
Which grinds and
which no effort of the will
Can interrupt, while
the automaton
Is taking off what he
has just put on
Or walking briskly to
the corner store
To buy the paper he
has read before.
Why is it so? Is it,
perhaps, because
In penless work there
is no pen-poised pause
And one must use
three hands at the same time
Having to choose the
necessary rhyme,
Hold the completed
line before one’s eyes,
And keep in mind all
the preceding tries?
Or is the process
deeper with no desk
To prop the false and
hoist the poetesque?
For there are those
mysterious moments when
Too weary to delete,
I drop my pen;
I ambulate – and by
some mute command
The right word flutes
and perches on my hand.
O Mestre da Escrita
(Thomas Eakins: pintor
norte-americano)
Canto Quarto
Eu falarei agora da
beleza
Como ninguém falou.
Hei de chorar
Como ninguém chorou,
e tentarei
O que ninguém tentou.
Farei o que
Ninguém fez. E,
falando nessa máquina
Maravilhosa, sempre
me intrigaram
As diferenças entre
duas formas
De compor: a primeira
ocorre apenas
Na mente do poeta, ao
ensaiar
As palavras enquanto
se ensaboa.
A outra, bem mais
decorosa, quando
Empunha a pena e
escreve em seu estúdio.
Neste segundo tipo, a
mão sustenta
O pensamento, e o que
é batalha abstrata
Se faz concreta
quando a pena estaca
Em pleno voo e, num
mergulho, apaga
O pôr-do-sol ou
recompõe a estrela,
Guiando assim,
fisicamente, a frase
Em meio ao labirinto
de rasuras.
Mas o primeiro é
angústia! Todo o cérebro
Se reveste de dor e,
autoritária,
A Musa assume o mando
do exercício.
A vontade é
impotente: o pobre autômato
Despe o que acaba de
vestir, ou corre
Para comprar na banca
ali na esquina
O jornal que já leu.
Por que razão?
Talvez porque,
compondo de memória,
haja a pausa da
caneta e cumpra
Utilizar três mãos ao
mesmo tempo:
Uma escolhendo a rima
necessária,
Outra empunhando o
verso terminado
E a terceira
arquivando as variantes.
Ou será que o
processo é mais profundo
Sem instrumento que
preserve o falso?
Pois há momentos
mágicos em que
Descanso a pena,
deambulo – e, ouvindo
Algum mudo comando, o
termo exato
Esvoaça e vem pousar
na minha mão.
Referências:
Em Inglês
NABOKOV, Vladimir. Pale
fire: canto four (excerpt). New York, NY: Lancer Books, 1963. p. 45-46.
Em Português
NABOKOV, Vladimir.
Fogo pálido: canto quarto (excerto). Tradução de Jorio Dauster e Sérgio
Duarte. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1989. p. 49-50.
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