Estas linhas
ecfrásticas são um tributo do poeta e tradutor português ao renomado pintor do
Renascimento – Sandro Botticelli (1445-1510) –, conferindo, por conseguinte,
certo matiz ao poema que se vincula a uma dimensão histórica e cultural da humanidade,
com destaque para a forma como a grande arte transcende as épocas e as
fronteiras geográficas, deixando uma marca indelével ante a passagem do tempo.
Notam-se nos versos belas
alusões ao poder da arte e da criação, ao mesmo tempo que vislumbram-se
deslindes sobre as emoções e a complexidade do processo criativo, bem assim os
correspondentes impactos sobre o próprio artista, trazendo-lhe luz e revelando-lhe
o que estava oculto, atenuando-lhe alguns traços para, em outra senda, incitar-lhe
a uma transformação pessoal.
J.A.R. – H.C.
José Bento
(1932-2019)
Para Botticelli
Pressinto que o mundo
cresce de teus dedos
quando num clarão
mortal se rasgam asas
e faces lívidas de
anjos
choram suas raízes arrancadas
do chão.
Quando o vento grita
em teus cabelos
que não é o mar a
seara que se ondula.
Quando um perfil
destrói em si a noite
e o teu peito, onde
límpida era a sua cor.
Quando uma árvore
frutifica a sua solidão
e se ilumina
com um súbito canto
ou um vulto quase
irreal de ser tão breve.
Quando, de olhos
sangrentos,
sentes nitidamente o
anoitecer
e exausto abandonas a
cabeça a mãos ausentes,
náufrago de veias que
prolongam a terra,
transfigurado no
rosto
onde a manhã anuncia
o seu regresso.
Porto, 10 novembro de
1952
As provações de
Moisés
(Sandro Botticelli:
pintor italiano)
Referência:
BENTO, José. Para
Botticelli. In: __________. Silabário: poesia. Lisboa, PT: Relógio d’Água,
1992. p. 228.
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