Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

José Bento - Para Botticelli

Estas linhas ecfrásticas são um tributo do poeta e tradutor português ao renomado pintor do Renascimento – Sandro Botticelli (1445-1510) –, conferindo, por conseguinte, certo matiz ao poema que se vincula a uma dimensão histórica e cultural da humanidade, com destaque para a forma como a grande arte transcende as épocas e as fronteiras geográficas, deixando uma marca indelével ante a passagem do tempo.

 

Notam-se nos versos belas alusões ao poder da arte e da criação, ao mesmo tempo que vislumbram-se deslindes sobre as emoções e a complexidade do processo criativo, bem assim os correspondentes impactos sobre o próprio artista, trazendo-lhe luz e revelando-lhe o que estava oculto, atenuando-lhe alguns traços para, em outra senda, incitar-lhe a uma transformação pessoal.

 

J.A.R. – H.C.

 

José Bento

(1932-2019)

 

Para Botticelli

 

Pressinto que o mundo cresce de teus dedos

quando num clarão mortal se rasgam asas

e faces lívidas de anjos

choram suas raízes arrancadas do chão.

 

Quando o vento grita em teus cabelos

que não é o mar a seara que se ondula.

 

Quando um perfil destrói em si a noite

e o teu peito, onde límpida era a sua cor.

 

Quando uma árvore frutifica a sua solidão

e se ilumina

com um súbito canto

ou um vulto quase irreal de ser tão breve.

 

Quando, de olhos sangrentos,

sentes nitidamente o anoitecer

e exausto abandonas a cabeça a mãos ausentes,

náufrago de veias que prolongam a terra,

transfigurado no rosto

onde a manhã anuncia o seu regresso.

 

Porto, 10 novembro de 1952

 

As provações de Moisés

(Sandro Botticelli: pintor italiano)

 

Referência:

 

BENTO, José. Para Botticelli. In: __________. Silabário: poesia. Lisboa, PT: Relógio d’Água, 1992. p. 228.

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