Às voltas com a sua
própria identidade e essência individual, o poeta permite-nos entrever a luta interna
que trava entre o ser real e a percepção que os demais têm dele: autenticidade
e singularidade antes de tudo – percebe-se –, apesar das adversidades e das mudanças
na vida, dos sofrimentos e desfigurações, pois que quando se encontra despojado
de pretensões e superficialidades, sente-se o falante mais ele mesmo.
A par de toda essa
aparência de vulnerabilidade, da notória alusão à fugacidade e finitude da
existência humana, o ente lírico teima em persistir e avançar em seu caminho, deixando-se
vocacionar por desejos mais profundos e transcendentes, em lugar das meras
necessidades materiais, ou como ousa dizer, “preferindo a rosa ao pão”.
J.A.R. – H.C.
Cassiano Ricardo
(1895-1974)
Psicoautógrafo
Eu sou eu mesmo, o
que nunca foi outro.
Eu mesmo – o
eternamente condenado
a obedecer a física
do estômago,
não obstante ao pão
preferir a rosa.
A exibir meu sinal,
qual fez Ulisses,
ao retornar, aos
seus, e já ignorado.
A ter, na vida, um número
de porta,
por onde entrou, e há
de sair meu corpo.
Eu sou eu mesmo, o p’ra
sempre forçado
a seguir para a
frente de batalha,
e voltar caminhando,
em carne e osso,
sobre minhas feridas,
e – já morto, –
a provar, quanto mais
desfigurado,
que nunca fui tão eu,
tão nenhum outro.
Enigma
(Maureen Bruinsma: artista
norte-americana)
Referência:
RICARDO, Cassiano. Psicoautógrafo.
A Manhã, Suplemento Letras e Artes, Rio de Janeiro (RJ), p. 5, 12
fev. 1950. Disponível neste endereço. Acesso em 10 ago.
2024.
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