Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Luís Miguel Nava - A exactidão das coisas

Flui em peremptória e deliberada indefinição o discurso do falante neste poema em prosa, a descerrar a faceta da impermanência do mundo, por força das leis incorporadas a seus elementos: as coisas parecem estar sempre num estado de transição, informes ainda as suas possibilidades, configurando um contexto de ambivalência que lança suas pontes do presente ao futuro.

 

Ao leitor devo confidenciar o que me trouxe à lembrança o texto de Nava, ainda que a conexão com as ideias nele contidas seja, quando muito, interseccional: refiro-me ao Princípio da Incerteza de Heisenberg, o qual, no domínio da Física Quântica, sugere não ser possível determinar, simultaneamente, a posição e o momentum de uma partícula atômica, ou de outro modo, caso se conheça com precisão uma das grandezas, perde-se completamente a precisão na medida da outra.

 

E assim viajamos em meio a essa nuvem de indeterminação!

 

J.A.R. – H.C.

 

Luís Miguel Nava

(1957-1995)

 

A exactidão das coisas

 

A exactidão das coisas, a plena adequação de cada uma aos seus contornos, é algo que jamais se verifica, indo de par a sua variável precisão com a maior ou menor proximidade a que se encontrem do presente, dimensão ideal a que, nos seus arredores, todas elas tendem a seu modo, sem que alguma vez a possam atingir. Há entre elas desencontros decorrentes da inconstante resistência que, em virtude de factores como a substância, a antiguidade ou as funções que desempenham, oferecem ao futuro. Os seus contornos, mais ou menos inexactos, são pois fruto, em grande parte, da presença do futuro, que nelas, em ritmos e velocidades desiguais, encarna com um rumor às vezes quase imperceptível.

Em certas circunstâncias, os objectos estabelecem entre si contactos que conduzem a reajustamentos dos diversos ritmos e densidades com que o futuro através deles se precipita, provocando assim alterações imprevisíveis a que vamos procurar motivos para indagação e espanto. Há ocasiões em que o futuro é espesso, outras mais rarefeito, alturas em que tem qualquer coisa de agudo, percuciente, outras algo de abismal, vertiginoso. Através dos objectos, de que, a um certo nível, podemos assim dizer que é uma componente essencial e impossível de isolar, todo o futuro flui na mira de um presente que incessantemente se desloca.

 

Abstrato

(Tikashi Fukushima: pintor nipo-brasileiro)

 

Referência:

 

NAVA, Luís Miguel. A exactidão das coisas. In: __________. Poesia completa: 1979-1994. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 2002. p. 185.

 

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