Flui em peremptória e
deliberada indefinição o discurso do falante neste poema em prosa, a descerrar a
faceta da impermanência do mundo, por força das leis incorporadas a seus
elementos: as coisas parecem estar sempre num estado de transição, informes
ainda as suas possibilidades, configurando um contexto de ambivalência que lança
suas pontes do presente ao futuro.
Ao leitor devo confidenciar
o que me trouxe à lembrança o texto de Nava, ainda que a conexão com as ideias
nele contidas seja, quando muito, interseccional: refiro-me ao Princípio da
Incerteza de Heisenberg, o qual, no domínio da Física Quântica, sugere não ser possível
determinar, simultaneamente, a posição e o momentum de uma partícula atômica,
ou de outro modo, caso se conheça com precisão uma das grandezas, perde-se completamente
a precisão na medida da outra.
E assim viajamos em
meio a essa nuvem de indeterminação!
J.A.R. – H.C.
Luís Miguel Nava
(1957-1995)
A exactidão das
coisas
A exactidão das coisas, a plena adequação de cada uma aos seus
contornos, é algo que jamais se verifica, indo de par a sua variável precisão
com a maior ou menor proximidade a que se encontrem do presente, dimensão ideal
a que, nos seus arredores, todas elas tendem a seu modo, sem que alguma vez a
possam atingir. Há entre elas desencontros decorrentes da inconstante
resistência que, em virtude de factores como a substância, a antiguidade ou as
funções que desempenham, oferecem ao futuro. Os seus contornos, mais ou menos
inexactos, são pois fruto, em grande parte, da presença do futuro, que nelas,
em ritmos e velocidades desiguais, encarna com um rumor às vezes quase
imperceptível.
Em certas circunstâncias, os objectos estabelecem entre si contactos que
conduzem a reajustamentos dos diversos ritmos e densidades com que o futuro
através deles se precipita, provocando assim alterações imprevisíveis a que
vamos procurar motivos para indagação e espanto. Há ocasiões em que o futuro é
espesso, outras mais rarefeito, alturas em que tem qualquer coisa de agudo, percuciente,
outras algo de abismal, vertiginoso. Através dos objectos, de que, a um certo
nível, podemos assim dizer que é uma componente essencial e impossível de
isolar, todo o futuro flui na mira de um presente que incessantemente se
desloca.
Abstrato
(Tikashi Fukushima:
pintor nipo-brasileiro)
Referência:
NAVA, Luís Miguel. A exactidão das coisas. In: __________. Poesia completa: 1979-1994. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 2002. p. 185.
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