A voz lírica sente-se
como que fortemente hipotecada para levar à frente o seu destino, um futuro que
lhe parece “impossível” ante o peso das imagens que lhe acorrem à mente, todas
elas relativas a um passado renitente, indelével, contundente, de um presumível
tempo de infância: os versos do poema estão repletos de memórias de familiares –
alguns já falecidos –, dos cuidados da mãe, da companhia das irmãs, da casa com
amplo quintal, do cenário bucólico dos arredores.
Assim é que se pode
interpretar o vocábulo “caligrafia” no título do poema, um elemento escritural condicionado
pela primeira flor que medrou nessa comarca primordial de reminiscências, a
modelar a intensa sensibilidade do falante, em busca de imagens que lhe libertem
o pensamento, os anelos comedidos pelas rodas da introversão.
J.A.R. – H.C.
José Luís Peixoto
(n. 1974)
vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino
vejo na minha
caligrafia as escadas do meu destino.
aquela casa tão
grande com um quintal de galinhas
a morrerem
ciclicamente. as malvas entristecidas
em canteiros já sem
esperança. e em cada estrofe de
estar sentado perante
a paisagem, o poema único e final.
as mulheres arrastam
as tardes pelos versos, como
lembranças a arder em
todas as noites da minha vida.
quem pode esquecer as
tardes, se os ramos das laranjeiras
eram inesquecíveis?
cada palavra possui um palmo desse
quintal infinito.
a fruteira sobre a
mesa da cozinha é sangue no poema.
o meu destino
emparedou-se, e um destino é para sempre.
as minhas mãos
estendidas são atravessadas pela luz
que mostra no ar a
dança do pó. respondo tantas coisas aos
talheres guardados na
gaveta.
chegam as vozes que
nunca partiram. chegam os rostos
que sonho quando
acordo de repente a chorar. agora,
és o homem da casa,
disseram-me. e já não havia casa.
a mãe passa um ano,
como as crianças que ainda brincam
numa rua imaginária
passam as horas. mãe inocente
e humilhada pelo céu
e pelas estrelas, pelos cães a ladrarem
ao longe, pelas
mulheres a caiarem paredes, pelos sinos
que nos chamam e pela
estrada do cemitério. mãe,
vida multiplicada,
como se o teu corpo se rasgasse e a carne
fosse a terra e as
palavras, e os ossos fossem os ramos das
laranjeiras e as palavras.
felizmente, há os
versos, último esconderijo da pureza.
porque o destino são
os versos e os pombos que cruzam
o céu em círculos que
sempre regressam.
as minhas irmãs
semeiam pensamentos na escuridão
absoluta das manhãs.
este é o dia presente, esta é a hora
presente. agora,
neste instante, sobre esta letra última,
repousa o peso dos
teus cabelos. os nossos sonhos
atravessam a janela e
estendem-se no chão, vêm do céu,
desenham-nos as
sombras rente aos corpos velhos e sem
uso. tomamos banho. a
água. a água. os nossos sonhos
dissolvem-se lentamente
onde os esquecemos.
estou na casa onde as
memórias se sentam nas cadeiras
para jantar em pratos
invisíveis. aquele quadro é bonito.
aquela jarra foi comprada
na feira de outubro. aquele livro
tem palavras que não significam
nada.
existe uma fruteira
na mesa onde a mãe serve todos os dias
o meu destino. existe
um corredor a lembrar todos os dias
a solidão povoada.
existe papel e versos. existe tudo aquilo
que não digo, que não
sei dizer, que está na minha caligrafia,
que está ordenado nas
folhas de tantos outonos do quintal abandonado.
existe uma mesa, uma
lareira apagada, as mãos, uma
sepultura sozinha no
cemitério, os olhos, os ossos, a minha
pele e as horas escritas
no futuro impossível.
Alguém da família
(Frederick G. Cotman:
pintor inglês)
Referência:
PEIXOTO, José Luís. vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino. In: __________. A criança em ruínas: poemas. Porto Alegre, RS: Dublinense, 2017. p. 24-26.
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