Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 28 de maio de 2024

José Luís Peixoto - vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino

A voz lírica sente-se como que fortemente hipotecada para levar à frente o seu destino, um futuro que lhe parece “impossível” ante o peso das imagens que lhe acorrem à mente, todas elas relativas a um passado renitente, indelével, contundente, de um presumível tempo de infância: os versos do poema estão repletos de memórias de familiares – alguns já falecidos –, dos cuidados da mãe, da companhia das irmãs, da casa com amplo quintal, do cenário bucólico dos arredores.

 

Assim é que se pode interpretar o vocábulo “caligrafia” no título do poema, um elemento escritural condicionado pela primeira flor que medrou nessa comarca primordial de reminiscências, a modelar a intensa sensibilidade do falante, em busca de imagens que lhe libertem o pensamento, os anelos comedidos pelas rodas da introversão.

 

J.A.R. – H.C.

 

José Luís Peixoto

(n. 1974)

 

vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino

 

vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino.

aquela casa tão grande com um quintal de galinhas

a morrerem ciclicamente. as malvas entristecidas

em canteiros já sem esperança. e em cada estrofe de

estar sentado perante a paisagem, o poema único e final.

as mulheres arrastam as tardes pelos versos, como

lembranças a arder em todas as noites da minha vida.

quem pode esquecer as tardes, se os ramos das laranjeiras

eram inesquecíveis? cada palavra possui um palmo desse

quintal infinito.

 

a fruteira sobre a mesa da cozinha é sangue no poema.

o meu destino emparedou-se, e um destino é para sempre.

as minhas mãos estendidas são atravessadas pela luz

que mostra no ar a dança do pó. respondo tantas coisas aos

talheres guardados na gaveta.

 

chegam as vozes que nunca partiram. chegam os rostos

que sonho quando acordo de repente a chorar. agora,

és o homem da casa, disseram-me. e já não havia casa.

 

a mãe passa um ano, como as crianças que ainda brincam

numa rua imaginária passam as horas. mãe inocente

e humilhada pelo céu e pelas estrelas, pelos cães a ladrarem

ao longe, pelas mulheres a caiarem paredes, pelos sinos

que nos chamam e pela estrada do cemitério. mãe,

vida multiplicada, como se o teu corpo se rasgasse e a carne

fosse a terra e as palavras, e os ossos fossem os ramos das

laranjeiras e as palavras.

 

felizmente, há os versos, último esconderijo da pureza.

porque o destino são os versos e os pombos que cruzam

o céu em círculos que sempre regressam.

 

as minhas irmãs semeiam pensamentos na escuridão

absoluta das manhãs. este é o dia presente, esta é a hora

presente. agora, neste instante, sobre esta letra última,

repousa o peso dos teus cabelos. os nossos sonhos

atravessam a janela e estendem-se no chão, vêm do céu,

desenham-nos as sombras rente aos corpos velhos e sem

uso. tomamos banho. a água. a água. os nossos sonhos

dissolvem-se lentamente onde os esquecemos.

 

estou na casa onde as memórias se sentam nas cadeiras

para jantar em pratos invisíveis. aquele quadro é bonito.

aquela jarra foi comprada na feira de outubro. aquele livro

tem palavras que não significam nada.

 

existe uma fruteira na mesa onde a mãe serve todos os dias

o meu destino. existe um corredor a lembrar todos os dias

a solidão povoada. existe papel e versos. existe tudo aquilo

que não digo, que não sei dizer, que está na minha caligrafia,

que está ordenado nas folhas de tantos outonos do quintal abandonado.

existe uma mesa, uma lareira apagada, as mãos, uma

sepultura sozinha no cemitério, os olhos, os ossos, a minha

pele e as horas escritas no futuro impossível.

 

Alguém da família

(Frederick G. Cotman: pintor inglês)

 

Referência:

 

PEIXOTO, José Luís. vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino. In: __________. A criança em ruínas: poemas. Porto Alegre, RS: Dublinense, 2017. p. 24-26.

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