Neste soneto com
versos decassílabos brancos, rico em traços diferenciais amazônicos, o poeta
manauara espelha muito da paisagem regional, sua topografia, a presença ostensiva
da floresta com o seu prodigioso manancial de vida botânica, entrecortada pela
melopeia de uma superabundância de aves canoras – uma das quais, o uirapuru.
Um canto harmonioso –
tantas vezes cotejado ao de uma flauta –, linguagem assimilada como se de amor
e de morte, enleia o ente lírico ao pássaro: saudades de uma ausência, fomentadas
por quem tem o hábito de “dar voz às cinzas”, fecundando o sonho de renovação a
sustentar a eclosão do verde – ao mesmo tempo tão exuberante e tão vulnerável.
J.A.R. – H.C.
Max Carphentier
(n. 1945)
Do uirapuru
Todo dia acordar para
uma ausência
como se acorda a
flauta no deserto,
como acordamos eu e o
uirapuru
para o destino de dar
voz às cinzas.
Ele ao frio sobe das
mais altas copas;
eu ao frio desço das
mais velhas sombras;
e vinda a noite o
canto que nos mata
inda recende pela
flor das trevas.
À sombra dessa voz
sonham as orquídeas,
tremem-se as águas no
igapó dos olhos,
e a serpe e a flor, o
sonho e a mão perdida
seus corpos cobrem
sob folhas mortas.
Como é saudade o dom
que inda nos resta,
em nós, de amor
maior, canta a floresta.
Em: “Tiara do verde
amor” (1988)
O uirapuru
(Moacir C. de
Andrade: artista manauara)
Referência:
CARPHENTIER, Max. Do
uirapuru. In: SAVARY, Olga (Organização, seleção, notas e apresentação). Antologia
da nova poesia brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Rio / Hipocampo,
1992. p. 216.
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