O poeta tece uma
elegia do esboroar de sua própria imagem, por meio da qual se identifica com os
escombros do mar à deriva, fragmentos decantados nas regiões moventes entre a
praia – por onde caminha – e o mar – onde as ondas “farfalham sibilantes”:
ainda assim, o falante percebe que, a despeito do quanto se esforce para se autocircunscrever
em palavras, seu “Eu real permanece intocado, inenarrável, inalcançável”.
Mediante essa extensa
lucubração – testemunho verbal de uma latente crise existencial –, a voz lírica
minudencia a sua busca por algo mais estável, menos fragmentário, como o
segredo por trás do murmurar da natureza que lhe chega aos ouvidos, a exemplo de
alguma verdade na qual a presença humana possa encontrar amparo – não tanto
assim quanto uma mescla indistinta de oceano, areia, vento e detritos.
J.A.R. – H.C.
Walt Whitman
(1819-1892)
As I Ebb’d with the
Ocean of Life
1
As I ebb’d with the
ocean of life,
As I wended the
shores I know,
As I walk’d where the
ripples continually wash you Paumanok,
Where they rustle up
hoarse and sibilant,
Where the fierce old
mother endlessly cries for her castaways,
I musing late in the
autumn day, gazing off southward,
Held by this electric
self out of the pride of which I utter poems,
Was seiz’d by the
spirit that trails in the lines underfoot,
The rim, the sediment
that stands for all the water and all the land
of the globe.
Fascinated, my eyes
reverting from the south, dropt, to follow those
slender windrows,
Chaff, straw,
splinters of wood, weeds, and the sea-gluten,
Scum, scales from
shining rocks, leaves of salt-lettuce, left by the tide,
Miles walking, the
sound of breaking waves the other side of me,
Paumanok there and
then as I thought the old thought of likenesses,
These you presented
to me you fish-shaped island,
As I wended the
shores I know,
As I walk’d with that
electric self seeking types.
2
As I wend to the
shores I know not,
As I list to the
dirge, the voices of men and women wreck’d,
As I inhale the
impalpable breezes that set in upon me,
As the ocean so
mysterious rolls toward me closer and closer,
I too but signify at
the utmost a little wash’d-up drift,
A few sands and dead
leaves to gather,
Gather, and merge
myself as part of the sands and drift.
O baffled, balk’d,
bent to the very earth,
Oppress’d with myself
that I have dared to open my mouth,
Aware now that amid
all that blab whose echoes recoil upon me
I have not once had
the least idea who or what I am,
But that before all
my arrogant poems the real Me stands yet
untouch’d, untold,
altogether unreach’d,
Withdrawn far,
mocking me with mock-congratulatory signs and bows,
With peals of distant
ironical laughter at every word I have written,
Pointing in silence
to these songs, and then to the sand beneath.
I perceive I have not
really understood any thing, not a single object,
and that no man ever
can,
Nature here in sight
of the sea taking advantage of me to dart upon
me and sting me,
Because I have dared
to open my mouth to sing at all.
3
You oceans both, I
close with you,
We murmur alike
reproachfully rolling sands and drift, knowing not why,
These little shreds
indeed standing for you and me and all.
You friable shore
with trails of debris,
You fish-shaped
island, I take what is underfoot,
What is yours is mine
my father.
I too Paumanok,
I too have bubbled
up, floated the measureless float, and been wash’d
on your shores,
I too am but a trail
of drift and debris,
I too leave little
wrecks upon you, you fish-shaped island.
I throw myself upon
your breast my father,
I cling to you so
that you cannot unloose me,
I hold you so firm
till you answer me something.
Kiss me my father,
Touch me with your
lips as I touch those I love,
Breathe to me while I
hold you close the secret of the murmuring I envy.
4
Ebb, ocean of life,
(the flow will return,)
Cease not your
moaning you fierce old mother,
Endlessly cry for
your castaways, but fear not, deny not me,
Rustle not up so
hoarse and angry against my feet as I touch you
or gather from you.
I mean tenderly by
you and all,
I gather for myself
and for this phantom looking down where
we lead, and
following me and mine.
Me and mine, loose
windrows, little corpses,
Froth, snowy white,
and bubbles,
(See, from my dead
lips the ooze exuding at last,
See, the prismatic
colors glistening and rolling,)
Tufts of straw,
sands, fragments,
Buoy’d hither from
many moods, one contradicting another,
From the storm, the
long calm, the darkness, the swell,
Musing, pondering, a
breath, a briny tear, a dab of liquid or soil,
Up just as much out
of fathomless workings fermented and thrown,
A limp blossom or
two, torn, just as much over waves floating,
drifted at random,
Just as much for us
that sobbing dirge of Nature,
Just as much whence
we come that blare of the cloud-trumpets,
We, capricious,
brought hither we know not whence, spread
out before you,
You up there walking
or sitting,
Whoever you are, we
too lie in drifts at your feet.
Solidão Praia Morro
(J. D. Bluehorse:
artista norte-americana)
Quando Refluí com o
Oceano da Vida
1
Quando refluí com o oceano
da vida,
Quando segui
margeando os litorais que conheço,
Quando andei por onde
as ondulações continuamente te banham,
Paumanok,
Onde elas farfalham
roucas e sibilantes,
Onde a impetuosa
velha mãe chora sem cessar por aqueles que perdeu,
Eu, cismando até
tarde, num dia de outono, olhando fixamente para
o sul,
Seguro por este Eu
elétrico, nesse orgulho que me leva a expressar
poemas,
Fui tomado pelo
espírito que caminha nas linhas sob os pés,
A borda, o sedimento
que sustenta toda a água e toda a terra do globo.
Fascinado, meu olhar
retornando do sul, caído, para seguir aqueles
delgados sulcos
profundos,
Farelo, palha, lascas
de madeira, ervas daninhas e o glúten do mar,
Refugo, escamas das
pedras brilhantes, folhas de algas deixadas
pela maré,
Andando por milhas, o
som das ondas quebrando no outro lado de mim,
Paumanok lá e, então,
tal como eu pensara, o velho pensamento da
imagem,
Isso tu me
presenteaste, tu, ilha com forma de peixe,
Quando eu seguia o
litoral que conheço,
Quando andava com
aquele Eu elétrico procurando tipos.
2
Quando me dirijo ao
litoral que não conheço,
Quando arrolo no hino
fúnebre as vozes dos náufragos, dos homens
e das mulheres,
Quando inalo as
brisas imponderáveis que se instalam sobre mim,
Quando o oceano tão misterioso
se agita em minha direção,
cada vez mais
próximo,
Eu igualmente
significo, no máximo, um pequeno escombro molhado e
à deriva,
Uns poucos grãos de
areia e folhas para serem reunidos,
Para reunir-me e
tornar-me parte das areias e dos escombros à deriva.
Ó confundido,
empacado, vergado para a própria terra,
Sinto-me oprimido
porque ousei abrir a minha boca,
Consciente agora,
pois que em meio a tudo o que me segredam aqueles
cujos ecos repercutem
sobre mim, nem uma única vez tive ideia
de quem ou o que sou,
E apesar de todos os
meus arrogantes poemas, o Eu real permanece
intocado, inenarrável,
de um modo geral inalcançável,
Retirado,
ironizando-me, com sinais de certa ironia congratulatória,
fazendo reverências,
Com trejeitos de riso
desdenhoso e distante acerca de cada palavra que
já escrevi,
Apontando em silêncio
para estas canções e depois para a areia do chão.
Percebo que de fato
não compreendi coisa alguma, nem um único
objeto, e que nenhum
homem o fará um dia,
A natureza aqui, à
vista do mar, tirando vantagem de mim para
lançar-se sobre mim e
me ferir,
Apenas porque ousei
abrir a minha boca para cantar.
3
Vós, ambos os
oceanos, pareço-me convosco,
Murmuramos de modo
semelhante e, de modo censurável, balançamos
areia e escombros,
sem saber por quê,
Esses diminutos
fragmentos boiando por ti e por mim e por todos.
Tu, margem que
esboroa com trilhas e entulho,
Tu, ilha com forma de
peixe, eu levo o que está debaixo de meus pés,
O que é teu é meu,
meu pai.
Eu também, Paumanok,
Eu também borbulhei e
flutuei a flutuação sem medida, e fui lavado
em tuas praias,
Eu também sou apenas
uma trilha de restos de um naufrágio e
escombros,
Eu também deixo
pequenos naufrágios sobre ti, tu, ilha com forma
de peixe.
Eu me lanço sobre o
teu peito, meu pai,
Eu me apego a ti de
tal modo que não possas me soltar,
Eu te prendo com
tamanha firmeza que te sentes obrigado
a me responder alguma
coisa.
Beija-me, meu pai,
Toca-me com teus
lábios, tal como procedo com aqueles a quem amo,
Sussurra para mim,
enquanto te aperto num abraço, o segredo do
murmúrio que eu
invejo.
4
Reflui, oceano da
vida (o fluxo retornará),
Não cessa o teu
gemido, minha velha mãe ardente,
Chora eternamente por
aqueles que perdeste, mas não sintas medo nem
fujas de mim,
Não rujas com voz tão
rouca e com tal raiva contra os meus pés
quando me roço em ti,
ou quando colho de ti.
Minha intenção é
terna para contigo e para com todos,
Eu colho para mim e
para esse fantasma que olha para baixo, para
o local em que
avançamos, eu e o que é meu.
Eu e o que é meu,
paveia solta, pequenos corpos,
Espuma, flocos de
neve branca, e bolhas,
(Vê, de meus lábios
mortos o vapor expirar finalmente,
Vê, as cores do
prisma brilhando e se agitando),
Tufos de palha,
areias, fragmentos,
Que boiaram até aqui,
vindos pela força dos humores, um a
contradizer o outro,
Vindos com as
tempestades, a calma longa, a escuridão, o inchaço,
Meditando,
ponderando, um suspiro, uma lágrima salgada, um salpico
de líquido ou de solo,
Para cima tanto
quanto para fora de insondáveis trabalhos fermentados
e atirados,
Um ou dois botões
frágeis, feridos, do mesmo modo, flutuando sobre
as ondas, boiando sem
rumo certo,
Tal como é para nós
aquele hino fúnebre da natureza,
Tal como o lugar de
onde vem para nós aquele som rijo do clarim das
nuvens,
Nós, caprichosos,
trouxemos aqui não sabemos de onde, e
espalhamos diante de
ti,
E tu, lá em cima,
andando ou sentado,
Quem quer que sejas,
nós também estamos à deriva aos teus pés.
Referências:
Em Inglês
WHITMAN, Walt. As I
ebb’d with the ocean of life. In: __________. The portable Walt Whitman.
Edited with an introduction by Michael Warner. 1st publ. New York, NY: Penguin
Books, 2004. p. 184-187.
Em Português
WHITMAN, Walt. Quando refluí com o oceano da vida. Tradução de Luciano Alves Meira. In: __________. Folhas de relva. Texto integral. Tradução e introdução de Luciano Alves Meira. 2. ed. São Paulo (SP): Martin Claret, 2012. p. 258-261. (Série Ouro: Coleção A Obra-Prima de Cada Autor, n. 42)
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