Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 19 de novembro de 2023

Helder Macedo - Face agreste do mundo aqui estou eu

Lisboa – “triste, amada, sepulcral e colorida” urbe – é a interlocutora da voz lírica, que somente existe porque há o ser loquaz do observador, atento para a sua história de conquistas e desventuras, desbravadora de um Ocidente inconteste, mas já agora como um espectro flutuante, tal qual obstinada chama que renuncia a se exaurir.

 

Apreendida para sempre na mente do falante, essa Lisboa – porto maior da “calcinada pátria” lusitana –, seja como for, virá a sucumbir entre escombros, quando então “o horizonte de novo há-de acordar”, com promissores cenários em descortínio: nesse entremeio, já não sobrará nem a ausência dessa vetusta pólis, tampouco do ente lírico, cujo mirar por ora lhe confere sustento.

 

J.A.R. – H.C.

 

Helder Macedo

(n. 1935)

 

Face agreste do mundo aqui estou eu

 

Face agreste do mundo aqui estou eu.

Não contavas comigo mas eu vim

como vieram meus irmãos

de fluido planta e bicho rastejante

ergui-me vertical

para dizer-te

existes porque sou.

 

Mas sendo assim

que hei-de fazer da chama que me anima?

 

Que hei-de fazer

cidade triste

amada

sepulcral e colorida

Lisboa nunca tida

perdida para sempre

falsa cidade submersa falsamente flutuando

fantasma

miragem feita só para iludir os terramotos

que hei-de fazer de mim?

 

Está longe

está longe a maravilha primitiva

dos braços e dos olhos rasgando o horizonte

as máquinas que partem vão sem nós

tolhidos no estertor da morte sem orgulho

descendentes bastardos

dos filhos

dos heróis

roendo o barco no dia do embarque

esfacelando a vida

por pavor de cumpri-la em escala inteira.

 

Oh não por mais que finjas

por mais que o Tejo lamba as feridas

e o poente

imponha catedrais às órbitas vazias

a mão de lodo agarra e já não larga

a mão de lodo que tu consentiste

invadida primeiro

saqueada e destruída

e depois cumplicemente reerguida

à tua própria imagem

para que em ti se executasse a dança derradeira

da lenta castração

entre o orgasmo aos pingos

dos deuses impotentes.

 

Portugal

nação precoce entre as suicidas

pelo hábito antigo de apontar o rumo

Ocidente

minha pátria calcinada

cavando abrigos para o nosso enterro

como dizer-te

eu que não sei de mim

perdido entre as esferas

perplexo já do assombro de viver

como dizer

a ti e ao mundo inteiro

na véspera da explosão

como dizer-te de modo que o entendas

que só a vida existe

e o resto é só o nada?

 

E tudo em mim recusa cantar a despedida

– não já a minha que o meu sangue inclui

mas de onde haver sequer que despedir-me

quando a crosta húmida

da terra submissa

não recobrou ainda

do espanto original igual ao nosso

pela vida que gerou.

 

Oh frustre torpe amor

que já não sabe servir a sua amada

e vergonhoso a destrói e se destrói

ciumento que outros venham e a mereçam.

 

Porém

entre os escombros

o horizonte de novo há-de acordar

e

de nós

nem a ausência

sobrará.

 

Em: “Das Fronteiras” (1962)

 

Ponte 25 de abril ao crepúsculo

(Dora Hathazi Mendes: pintora húngara)

 

Referência:

 

MACEDO, Helder. Face agreste do mundo aqui estou. In: TORGAL, Adosinda Providência; BOTELHO, Clotilde Correia (Organização e Nota Prévia). Lisboa com seus poetas: colectânea. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 2000. p. 301-304.

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