Lisboa – “triste,
amada, sepulcral e colorida” urbe – é a interlocutora da voz lírica, que
somente existe porque há o ser loquaz do observador, atento para a sua história
de conquistas e desventuras, desbravadora de um Ocidente inconteste, mas já
agora como um espectro flutuante, tal qual obstinada chama que renuncia a se
exaurir.
Apreendida para
sempre na mente do falante, essa Lisboa – porto maior da “calcinada pátria” lusitana
–, seja como for, virá a sucumbir entre escombros, quando então “o horizonte de
novo há-de acordar”, com promissores cenários em descortínio: nesse entremeio, já
não sobrará nem a ausência dessa vetusta pólis, tampouco do ente lírico, cujo
mirar por ora lhe confere sustento.
J.A.R. – H.C.
Helder Macedo
(n. 1935)
Face agreste do mundo
aqui estou eu
Face agreste do mundo
aqui estou eu.
Não contavas comigo
mas eu vim
como vieram meus
irmãos
de fluido planta e
bicho rastejante
ergui-me vertical
para dizer-te
existes porque sou.
Mas sendo assim
que hei-de fazer da
chama que me anima?
Que hei-de fazer
cidade triste
amada
sepulcral e colorida
Lisboa nunca tida
perdida para sempre
falsa cidade submersa
falsamente flutuando
fantasma
miragem feita só para
iludir os terramotos
que hei-de fazer de
mim?
Está longe
está longe a
maravilha primitiva
dos braços e dos
olhos rasgando o horizonte
as máquinas que
partem vão sem nós
tolhidos no estertor
da morte sem orgulho
descendentes
bastardos
dos filhos
dos heróis
roendo o barco no dia
do embarque
esfacelando a vida
por pavor de
cumpri-la em escala inteira.
Oh não por mais que
finjas
por mais que o Tejo
lamba as feridas
e o poente
imponha catedrais às
órbitas vazias
a mão de lodo agarra
e já não larga
a mão de lodo que tu
consentiste
invadida primeiro
saqueada e destruída
e depois
cumplicemente reerguida
à tua própria imagem
para que em ti se
executasse a dança derradeira
da lenta castração
entre o orgasmo aos
pingos
dos deuses
impotentes.
Portugal
nação precoce entre
as suicidas
pelo hábito antigo de
apontar o rumo
Ocidente
minha pátria
calcinada
cavando abrigos para
o nosso enterro
como dizer-te
eu que não sei de mim
perdido entre as
esferas
perplexo já do
assombro de viver
como dizer
a ti e ao mundo
inteiro
na véspera da
explosão
como dizer-te de modo
que o entendas
que só a vida existe
e o resto é só o
nada?
E tudo em mim recusa
cantar a despedida
– não já a minha que
o meu sangue inclui
mas de onde haver
sequer que despedir-me
quando a crosta
húmida
da terra submissa
não recobrou ainda
do espanto original
igual ao nosso
pela vida que gerou.
Oh frustre torpe amor
que já não sabe
servir a sua amada
e vergonhoso a
destrói e se destrói
ciumento que outros
venham e a mereçam.
Porém
entre os escombros
o horizonte de novo
há-de acordar
e
de nós
nem a ausência
sobrará.
Em: “Das Fronteiras”
(1962)
Ponte 25 de abril ao crepúsculo
(Dora Hathazi Mendes:
pintora húngara)
Referência:
MACEDO, Helder. Face
agreste do mundo aqui estou. In: TORGAL, Adosinda Providência; BOTELHO,
Clotilde Correia (Organização e Nota Prévia). Lisboa com seus poetas:
colectânea. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 2000. p. 301-304.
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