Tem-se aqui mais uma “lição
de anatomia”, excêntrica por óbvio, tanto mais em seu fecho desconcertante – “A
vida é um erro: alguns chegam a ser sentenciados a oitenta anos de vida” –,
muito embora dificilmente alguém possa contradizer o poeta no que diz respeito
ao fato de que a vida, depois dos sessenta – mais ou menos –, perde muito de
sua qualidade, refém que se torna de enfermidades e disfunções.
Mas detenhamo-nos na
oração que descerra o raciocínio: a vida seria mesmo um erro, de um modo cabal,
ou tal erro consistiria numa curva tanto mais vertical quanto mais se alongam as
décadas de vida?
A propósito, a ideia evoca-me
semelhante sentença de certo filósofo alemão – Nietzsche (1844-1900) –, para
quem “a vida, sem música, seria um erro, um infortúnio, um exílio.” (KSB, b. 8,
s. 231-232) (*): no ponto de interseção entre tais pensamentos – o do poeta e o
do filósofo –, a tortura excruciante de se ter que viver sem música e afligido por
dores imparáveis.
J.A.R. – H.C.
Ronaldo Costa
Fernandes
(n. 1952)
Lição de Anatomia
Sou coisa.
Algo assemelhado a
lápis ou vela
que para existir se
consome
esgrimindo garatujas
ou se queimando
no fulgor das
palavras ou na luz suicida
que ilumina enquanto
se imola.
O bumbo dos
solitários é o mesmo dos eufóricos
geme a mesma voz
surda
no compasso do tempo
das matrizes.
A tarde
com seu invólucro de
nuvens
conspira com vozes na
liturgia dos alvoroços.
A vida é um erro:
alguns chegam a ser
sentenciados
a oitenta anos de
vida.
Em: “Andarilho”
(2000)
Erro
(Mela Lucia: artista
norte-americana)
Nota:
(*). Nietzsche em carta ao seu amigo Johann Heinrich Köselitz (1854-1918),
a quem o filósofo apelidara de Peter Gast.
Referências:
NIETZSCHE, Friedrich.
Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe (KSB) Herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari. 8 Bände. Berlin, DE: Walter de Gruyter, 1986.
FERNANDES, Ronaldo Costa. Lição de anatomia. In: VAL, Waldir Ribeiro do (Org.). Vozes na paisagem: antologia de poetas brasileiros contemporâneos. Vol. I. Rio de Janeiro, RJ: Edições Galo Branco, 2005. p. 92.
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