Eis aqui não
exatamente uma lição de que se possa participar, por exemplo, num curso de
medicina, mas uma exposição de como a poesia é capaz de mediar entre o físico e
o metafísico, entre o material e o imaterial, facultando ao poeta (ou poetisa,
como no caso) o acesso a essas duas dimensões do ser, enquanto credenciada
articulação a dar conta das transformações havidas nessa “paisagem” factual.
A corruptibilidade do
corpo no transcurso do tempo, sua propensão em voltar ao nada de onde proveio,
e a despeito disso, o poder que detém para expressar vitalidade e plenitude: o
soma que é toda a substância em que se plasmam os versos de Varela, contingência
e metáfora por trás de uma descomunal fome de viver.
J.A.R. – H.C.
Blanca Varela
(1926-2009)
Lección de anatomía
más allá del dolor y
del placer la carne
inescrutable
balbuceando su
lenguaje de sombras y brumosos
colores
la carne convertida
en paisaje
en tierra en tregua
en acontecimiento
en pan inesperado y
en miel
en orina en leche en
abrasadora sospecha
en océano
en animal castigado
en evidencia y en
olvido
viendo la carne tan
cerrada y tan distante
me pregunto
qué hace allí la vida
simulando
el cabello a veces
tan cercano
que extravía al ojo
en su espesura
las bisagras
silenciosas cediendo
lagrimeando tornasol
y esa otra fronda
inexplorada
en donde el tacto
confunde
el día con la noche
fresca hermosa muerte
a la mitad del lecho
donde los miembros
mutilados retoñan
mientras la lengua
gira como una estrella
flor de carne
carnívora
entre los dientes de
carbón
ah la voz gangosa
entrecortada dulcísima del
amor
saciándote saciándose
saboreando el ciego
bocado
los mondos los
frágiles huesecillos del amor
ese fracaso ese
hambre
esa tristeza futura
como el cielo de una
jaula
la tierra gira
la carne permanece
cambia el paisaje
las horas se deshojan
es el mismo río que
se aleja o se acerca
tedioso espejo con la
misma gastada luna de
yeso
que se esponja hasta
llenar el horizonte
con su roñosa palidez
merodean las bestias
del amor en esa ruina
florece la gangrena
del amor
todavía se agitan las
tenazas elásticas
los pliegues
insondables laten
reino de ventosas
nacaradas
osario de mínimos
pájaros
primavera de suaves
gusanos agrios
como la bilis materna
más allá del dolor y
del placer
la negra estirpe
el rojo prestigio
la mortal victoria de
la carne
En: “Ejercicios
materiales” (1978-1993)
Lição de Anatomia do
Dr. F. Ruysch
(Adriaen Backer: pintor
holandês)
Lição de anatomia
para além da dor e do
prazer da carne
inescrutável
balbuciando sua
linguagem de sombras e brumosas
cores
a carne transformada
em paisagem
em terra em trégua em
acontecimento
em inesperado pão e
em mel
em urina em leite em abrasadora
suspeita
em oceano
em animal castigado
em evidência e em
olvido
vendo a carne tão fechada
e tão distante
me pergunto
o que faz a vida ali
a simular.
o cabelo por vezes
tão próximo
que desencaminha o
olhar em sua espessura
as silenciosas
articulações cedendo
lacrimejando
tornassol
e essa outra fronde
inexplorada
onde o tato confunde
o dia com a noite
fresca bela morte à
metade do leito
onde os membros
mutilados rebentam
enquanto a língua
gira como uma estrela
flor de carne
carnívora
entre os dentes de
carvão
ah a voz roufenha
entrecortada dulcíssima do
amor
saciando-te
saciando-se saboreando o cego
bocado
os impolutos os
frágeis ossículos do amor
esse fracasso essa
fome
essa tristeza futura
como o céu de uma
jaula
a terra gira
a carne permanece
muda a paisagem
as horas se desfolham
é o mesmo rio que se
afasta ou se aproxima
tedioso espelho com a
mesma desgastada lua de
gesso
que se estofa até
encher o horizonte
com sua enodoada
palidez
vagueiam as bestas do
amor nessa ruína
floresce a gangrena
do amor
ainda se agitam as elásticas
tenazes
vibram as dobras
insondáveis
reino de ventosas
nacaradas
ossuário de mínimos
pássaros
primavera de vermes
agridoces
como a bílis materna
para além da dor e do
prazer
a negra estirpe
o vermelho prestígio
a mortal vitória da
carne
Em: “Exercícios
materiais” (1978-1993)
Referência:
VARELA, Blanca. Lección de anatomia. In: __________. Canto villano: poesía reunida, 1994-1994. 2. ed. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 203-205. (Colección ‘Tierra Firme’)
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