Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 22 de outubro de 2023

Blanca Varela - Lição de anatomia

Eis aqui não exatamente uma lição de que se possa participar, por exemplo, num curso de medicina, mas uma exposição de como a poesia é capaz de mediar entre o físico e o metafísico, entre o material e o imaterial, facultando ao poeta (ou poetisa, como no caso) o acesso a essas duas dimensões do ser, enquanto credenciada articulação a dar conta das transformações havidas nessa “paisagem” factual.

 

A corruptibilidade do corpo no transcurso do tempo, sua propensão em voltar ao nada de onde proveio, e a despeito disso, o poder que detém para expressar vitalidade e plenitude: o soma que é toda a substância em que se plasmam os versos de Varela, contingência e metáfora por trás de uma descomunal fome de viver.

 

J.A.R. – H.C.

 

Blanca Varela

(1926-2009)

 

Lección de anatomía

 

más allá del dolor y del placer la carne

inescrutable

balbuceando su lenguaje de sombras y brumosos

colores

 

la carne convertida en paisaje

en tierra en tregua en acontecimiento

en pan inesperado y en miel

en orina en leche en abrasadora sospecha

en océano

en animal castigado

en evidencia y en olvido

 

viendo la carne tan cerrada y tan distante

me pregunto

qué hace allí la vida simulando

 

el cabello a veces tan cercano

que extravía al ojo en su espesura

las bisagras silenciosas cediendo

lagrimeando tornasol

y esa otra fronda inexplorada

en donde el tacto confunde

el día con la noche

 

fresca hermosa muerte a la mitad del lecho

donde los miembros mutilados retoñan

mientras la lengua gira como una estrella

 

flor de carne carnívora

entre los dientes de carbón

 

ah la voz gangosa entrecortada dulcísima del

amor

saciándote saciándose saboreando el ciego

bocado

 

los mondos los frágiles huesecillos del amor

ese fracaso ese hambre

esa tristeza futura

como el cielo de una jaula

 

la tierra gira

la carne permanece

cambia el paisaje

las horas se deshojan

 

es el mismo río que se aleja o se acerca

tedioso espejo con la misma gastada luna de

yeso

que se esponja hasta llenar el horizonte

con su roñosa palidez

 

merodean las bestias del amor en esa ruina

florece la gangrena del amor

todavía se agitan las tenazas elásticas

los pliegues insondables laten

 

reino de ventosas nacaradas

osario de mínimos pájaros

 

primavera de suaves gusanos agrios

como la bilis materna

 

más allá del dolor y del placer

la negra estirpe

el rojo prestigio

la mortal victoria de la carne

 

En: “Ejercicios materiales” (1978-1993)

 

Lição de Anatomia do Dr. F. Ruysch

(Adriaen Backer: pintor holandês)

 

Lição de anatomia

 

para além da dor e do prazer da carne

inescrutável

balbuciando sua linguagem de sombras e brumosas

cores

 

a carne transformada em paisagem

em terra em trégua em acontecimento

em inesperado pão e em mel

em urina em leite em abrasadora suspeita

em oceano

em animal castigado

em evidência e em olvido

 

vendo a carne tão fechada e tão distante

me pergunto

o que faz a vida ali a simular.

 

o cabelo por vezes tão próximo

que desencaminha o olhar em sua espessura

as silenciosas articulações cedendo

lacrimejando tornassol

e essa outra fronde inexplorada

onde o tato confunde

o dia com a noite

 

fresca bela morte à metade do leito

onde os membros mutilados rebentam

enquanto a língua gira como uma estrela

 

flor de carne carnívora

entre os dentes de carvão

 

ah a voz roufenha entrecortada dulcíssima do

amor

saciando-te saciando-se saboreando o cego

bocado

 

os impolutos os frágeis ossículos do amor

esse fracasso essa fome

essa tristeza futura

como o céu de uma jaula

 

a terra gira

a carne permanece

muda a paisagem

as horas se desfolham

 

é o mesmo rio que se afasta ou se aproxima

tedioso espelho com a mesma desgastada lua de

gesso

que se estofa até encher o horizonte

com sua enodoada palidez

 

vagueiam as bestas do amor nessa ruína

floresce a gangrena do amor

ainda se agitam as elásticas tenazes

vibram as dobras insondáveis

 

reino de ventosas nacaradas

ossuário de mínimos pássaros

 

primavera de vermes agridoces

como a bílis materna

 

para além da dor e do prazer

a negra estirpe

o vermelho prestígio

a mortal vitória da carne

 

Em: “Exercícios materiais” (1978-1993)

 

Referência:

 

VARELA, Blanca. Lección de anatomia. In: __________. Canto villano: poesía reunida, 1994-1994. 2. ed. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 203-205. (Colección ‘Tierra Firme’)

 

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