Adélia talvez aqui esteja
rememorando alguém de sua família, quem sabe seu pai, que em sonhos lhe aparece
como participante de uma procissão e a cantar, acompanhado por uma banda de
música: sobressai em seus versos o acento grave, sombrio e tonal – vermelho,
branco e marrom –, pungente a toda prova.
A “perpétua memória” a
que alude o título do poema incorpora um sentido de “ressurreição” – não
corporal, é claro –, a denotar “presença” contínua do ressurrecto na mente da
falante: libertado dos limites terrenos, sua estada na praça provoca uma debandada
de pombos, metáfora a encadear ideias díspares – “a alegria é tristeza” –, tais
como consolo e devoção a um desejo latente de abrir espaço para algo novo.
J.A.R. – H.C.
Adélia Prado
(n. 1935)
Para perpétua memória
Depois de morrer,
ressuscitou
e me apareceu em
sonhos muitas vezes.
A mesma cara sem
sombras, os graves da fala
em cantos, as
palavras sem pressa,
inalterada, a
qualidade do sangue,
inflamável como o dos
touros.
Seguia de opa
vermelha, em procissão,
uma banda de música e
cantava.
Que cantasse, era a
natureza do sonho.
Que fosse alto e
bonito o canto, era sua matéria.
Aconteciam na praça
sol e pombos
de asa branca e
marrom que debandavam.
Como um traço grafado
horizontal,
seu passo marcial
atrás da música,
o canto, a opa
vermelha, os pombos,
o que entrevi sem
erro:
a alegria é tristeza,
é o que mais punge.
Em: “Bagagem” (1976)
Banda musical do “Dia
dos Mortos”
(Julie Oakes: artista
norte-americana)
Referência:
PRADO, Adélia. Para
perpétua memória. In: __________. Poesia reunida. 1. ed. Rio de Janeiro,
RJ: Record, 2015. p. 94.
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