Nestes versos de
Galvão, Nina Simone (1933-2003), pianista, cantora, compositora e ativista
pelos direitos civis dos negros norte-americanos, declama um hipotético
solilóquio sobre si mesma, enfatizando o fato de que um Deus “espesso” e “exigente”
a habitou por décadas, tornando-a uma exuberante força a expressar as suas
orgânicas heranças africanas.
A síntese por meio da
qual ela se define ao final da segunda estrofe – “Raio de Iansã, trovão,
ciclone / Sopro de Orixá” – espelha um timbre notoriamente parelho ao da
cultura afro-brasileira, decerto com a intenção de denotar os laços comuns da
cultura negra nos EUA e no Brasil.
E se Nina emprega uma
locução em francês para se autonomear – “c’est moi” –, logo acode à memória o
fato de que ela veio a falecer em Carry-le-Rouet, uma pequena cidade na costa
mediterrânea da França.
J.A.R. – H.C.
Donizete Galvão
(1955-2014)
Solilóquio de Nina
Simone
Habitou-me um deus
espesso.
Sangue cor de fígado.
Veneno talhado, macerado
e amargoso.
Fez morada em cada
célula.
Nos alvéolos, nas
entranhas, sob as unhas.
Expande a veia do pescoço.
Sangra pelas
gengivas.
Lateja nas têmporas e
nos pulsos.
Planta arrancada da
terra africana,
deita suas raízes
fundas de baobá
e traz gosto de lama
à boca.
Tem sabor atávico a
relembrar
o lodo de que se
originou o homem.
Habitou-me um deus
exigente,
que me fere e
exaspera.
Que espezinha o que
eu era.
Que fala o que eu não
pensara
e, dizendo-me ao
contrário,
faz-me gostar do
calvário
que, às cegas, eu
criei.
Nomeio o que não tem
nome:
Raio de Iansã,
trovão, ciclone,
Sopro de Orixá, c’est
moi
Nina Simone.
Nina Simone
(1933-2003)
Referência:
GALVÃO, Donizete.
Solilóquio de Nina Simone. In: ROSA, Jaime B. (Ed.). Antología de poesía
brasileña. Organización de Floriano Martins y José Geraldo Neres. Edición
bilingüe: portugués x español. Madrid, ES: Huerga & Fierro, 2006. p. 60.
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