Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Donizete Galvão - Solilóquio de Nina Simone

Nestes versos de Galvão, Nina Simone (1933-2003), pianista, cantora, compositora e ativista pelos direitos civis dos negros norte-americanos, declama um hipotético solilóquio sobre si mesma, enfatizando o fato de que um Deus “espesso” e “exigente” a habitou por décadas, tornando-a uma exuberante força a expressar as suas orgânicas heranças africanas.

 

A síntese por meio da qual ela se define ao final da segunda estrofe – “Raio de Iansã, trovão, ciclone / Sopro de Orixá” – espelha um timbre notoriamente parelho ao da cultura afro-brasileira, decerto com a intenção de denotar os laços comuns da cultura negra nos EUA e no Brasil.

 

E se Nina emprega uma locução em francês para se autonomear – “c’est moi” –, logo acode à memória o fato de que ela veio a falecer em Carry-le-Rouet, uma pequena cidade na costa mediterrânea da França.

 

J.A.R. – H.C.

 

Donizete Galvão

(1955-2014)

 

Solilóquio de Nina Simone

 

Habitou-me um deus espesso.

Sangue cor de fígado.

Veneno talhado, macerado e amargoso.

Fez morada em cada célula.

Nos alvéolos, nas entranhas, sob as unhas.

Expande a veia do pescoço.

Sangra pelas gengivas.

Lateja nas têmporas e nos pulsos.

Planta arrancada da terra africana,

deita suas raízes fundas de baobá

e traz gosto de lama à boca.

Tem sabor atávico a relembrar

o lodo de que se originou o homem.

 

Habitou-me um deus exigente,

que me fere e exaspera.

Que espezinha o que eu era.

Que fala o que eu não pensara

e, dizendo-me ao contrário,

faz-me gostar do calvário

que, às cegas, eu criei.

Nomeio o que não tem nome:

Raio de Iansã, trovão, ciclone,

Sopro de Orixá, c’est moi

Nina Simone.

 

Nina Simone

(1933-2003)

 

Referência:

 

GALVÃO, Donizete. Solilóquio de Nina Simone. In: ROSA, Jaime B. (Ed.). Antología de poesía brasileña. Organización de Floriano Martins y José Geraldo Neres. Edición bilingüe: portugués x español. Madrid, ES: Huerga & Fierro, 2006. p. 60.

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