A dinâmica dos
amantes, neste poema de Brault, transmigra de um plano de velhice e morte a
outro de nascimento e amanhecer, tendo por trás a fluência de um quotidiano sem
grandes sobressaltos, no qual o despertar teria a aparência de uma ressurreição:
“maravilha então de se despertar como se ressuscita”.
Na porteira da morte
ou no fim da calçada, o falante e sua companheira, encanecidos, tentam superar
a sequência de presumíveis noites agônicas, sublimando-as por reiterados “começos
de mundo”, no curso dos quais o leite nutriz provido pelo leiteiro logo se
converte em móbil para manter as suas “sombras iluminadas”, enquanto, entre eles,
o instante inexoravelmente cai.
J.A.R. – H.C.
Jacques Brault
(n. 1933)
Un jour quelconque
vieillirons-nous
ensemble au pas de la porte
têtes couvertes de
branches blanches et de
corbeaux oubliés
nos plaies confondues
sous un soleil pâle
mains effilées
momies d’un amour qui
nous ressemble
ton bras à mon bras
mon épaule contre la tienne
merveille alors de
s’éveiller comme on ressuscite
le matin n’a pas une
ride sur la peau des draps
viens sortons au
grand jour la rue n’a point d’âge
pas encore
tu ne dis rien près
de tes lèvres le souffle se fait rare
j’écoute pour la
millième fois le commencement
du monde
le temps se déplie
s’explique en espace
le lait tinte aux
yeux du laitier
est-ce l’hiver est-ce
l’été nous ne savons plus entre
nous l’instant tombe
des moineaux fusent
de rire les journaux crient
à tue-têtenos veines
si bleues se répondent
tremblerons-nous
ensemble au bout du trottoir
transis de nous
voir enfin ombres illuminées
Dans: “La poésie ce
matin” (1971)
Gafieira
(Dennis Esteves: pintor
paulista)
Um dia qualquer
envelheceremos juntos
ao pé da porta
cabeças cobertas de
galhos brancos e de corvos
esquecidos
nossas feridas
confundidas sob um sol pálido
mãos afiladas
múmias de um amor que
a nós se assemelha
teu braço no meu
braço meu ombro contra o teu
maravilha então de se
despertar como se ressuscita
a manhã não tem
nenhuma ruga sobre a pele
dos lençóis
vem saiamos em pleno
dia a rua não tem nenhuma
idade ainda
tu não dizes nada
perto de teus lábios o fôlego
se faz raro
eu escuto pela
milésima vez o começo do mundo
o tempo se desdobra se
explica em espaço
o leite tilinta aos
olhos do leiteiro
será inverno será
verão nós não sabemos mais
entre nós o instante
cai
pardais morrem de rir
os jornais gritam aturdindo
nossas veias tão
azuis se respondem
estremeceremos juntos
no fim do passeio
transidos de nos
vermos enfim sombras iluminadas
Em: “A poesia esta manhã”
(1971)
Referência:
BRAULT, Jacques. Un
jour quelconque / Um dia qualquer. Tradução de Álvaro Faleiros. In: __________.
Nas sendas de Jacques Brault: antologia de poemas (1965-2006). Prefácio,
seleção e tradução de Álvaro Faleiros. Brasília, DF: Editora da UnB, 2021. Em
francês: p. 132 e 134; em português: p. 133 e 135. (Coleção ‘Poetas do mundo’)
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