Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Jacques Brault - Um dia qualquer

A dinâmica dos amantes, neste poema de Brault, transmigra de um plano de velhice e morte a outro de nascimento e amanhecer, tendo por trás a fluência de um quotidiano sem grandes sobressaltos, no qual o despertar teria a aparência de uma ressurreição: “maravilha então de se despertar como se ressuscita”.

 

Na porteira da morte ou no fim da calçada, o falante e sua companheira, encanecidos, tentam superar a sequência de presumíveis noites agônicas, sublimando-as por reiterados “começos de mundo”, no curso dos quais o leite nutriz provido pelo leiteiro logo se converte em móbil para manter as suas “sombras iluminadas”, enquanto, entre eles, o instante inexoravelmente cai.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jacques Brault

(n. 1933)

 

Un jour quelconque

   

vieillirons-nous ensemble au pas de la porte

têtes couvertes de branches blanches et de

corbeaux oubliés

nos plaies confondues sous un soleil pâle

mains effilées

momies d’un amour qui nous ressemble

 

ton bras à mon bras mon épaule contre la tienne

merveille alors de s’éveiller comme on ressuscite

le matin n’a pas une ride sur la peau des draps

 

viens sortons au grand jour la rue n’a point d’âge

pas encore

tu ne dis rien près de tes lèvres le souffle se fait rare

j’écoute pour la millième fois le commencement

du monde

 

le temps se déplie s’explique en espace

le lait tinte aux yeux du laitier

est-ce l’hiver est-ce l’été nous ne savons plus entre

nous l’instant tombe

des moineaux fusent de rire les journaux crient

à tue-têtenos veines si bleues se répondent

 

tremblerons-nous ensemble au bout du trottoir

transis de nous voir   enfin   ombres illuminées

 

Dans: “La poésie ce matin” (1971)

 

Gafieira

(Dennis Esteves: pintor paulista)

 

Um dia qualquer

 

envelheceremos juntos ao pé da porta

cabeças cobertas de galhos brancos e de corvos

esquecidos

nossas feridas confundidas sob um sol pálido

mãos afiladas

múmias de um amor que a nós se assemelha

 

teu braço no meu braço meu ombro contra o teu

maravilha então de se despertar como se ressuscita

a manhã não tem nenhuma ruga sobre a pele

dos lençóis

 

vem saiamos em pleno dia a rua não tem nenhuma

idade ainda

tu não dizes nada perto de teus lábios o fôlego

se faz raro

eu escuto pela milésima vez o começo do mundo

 

o tempo se desdobra se explica em espaço

o leite tilinta aos olhos do leiteiro

será inverno será verão nós não sabemos mais

entre nós o instante cai

pardais morrem de rir os jornais gritam aturdindo

nossas veias tão azuis se respondem

 

estremeceremos juntos no fim do passeio

transidos de nos vermos   enfim   sombras iluminadas

 

Em: “A poesia esta manhã” (1971)

 

Referência:

 

BRAULT, Jacques. Un jour quelconque / Um dia qualquer. Tradução de Álvaro Faleiros. In: __________. Nas sendas de Jacques Brault: antologia de poemas (1965-2006). Prefácio, seleção e tradução de Álvaro Faleiros. Brasília, DF: Editora da UnB, 2021. Em francês: p. 132 e 134; em português: p. 133 e 135. (Coleção ‘Poetas do mundo’)

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