O verso derradeiro do
poema diz muito sobre como o poeta observa um enorme cacto – com um formato
intrincado e implexo – que tombara da calçada transversalmente à rua, causando
transtornos ao trânsito e ao suprimento de energia elétrica, além de ter danificado
os beirais do casario em frente: de uma beleza “áspera, intratável”, muito distinta
da matriz clássica que se costuma atribuir a uma criação airosa, digo melhor,
harmônica, refinada, simétrica até.
Bandeira vê no cacto certa
conduta “desesperada” e retorcida para fazer frente ao clima seco e inóspito do
nordeste brasileiro – “terra de feracidades excepcionais” –, comparando-a ao do
talhe emaranhado de dois famosos grupos escultóricos da arte europeia, ambos a
representar cenas de agrilhoamento e dor.
Sob tal perspectiva, o
cacto pode ser uma oportuna metáfora para certas pessoas que vêm ao mundo e se
veem confrangidas por acerbas dificuldades, tendo que lutar e lutar num ambiente
humano muitas vezes hostil, nem sempre logrando estabelecer-se a contento, tombando,
eventualmente, quando o tufão das circunstâncias abala as suas frágeis
fundações.
J.A.R. – H.C.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
O Cacto
Aquele cacto lembrava
os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte
constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco
nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo
para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão
furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou
atravessado na rua,
Quebrou os beirais do
casario fronteiro,
Impediu o trânsito de
bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos
elétricos e durante vinte e quatro horas
privou a cidade de
iluminação e energia:
– Era belo, áspero,
intratável.
Em: “Libertinagem”
(1930)
Cacto
(Usanee Chomnansin: pintora
tailandesa)
Referência:
BANDEIRA, Manuel. O
cacto. In: __________. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, RJ: José
Aguilar, 1967. p. 246.
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