Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 29 de abril de 2023

Luis Fernando Verissimo - O único animal

O ser humano é um leque de possibilidades, algumas positivas, outras deploráveis; alguém capaz de valorar previamente o resultado de suas ações e, ainda assim, agir comandado por suas emoções, pejadas de irracionalidade: neste poema, o autor gaúcho elenca os atributos que somente a nós pertencem, e outros tantos que não nos são exclusivos, acompanhados, sem embargo, por inflexões adversativas que trasladam o discurso de volta ao plano de nossas particularidades.

 

O homem e suas verdades – meros “erros irrefutáveis” (*), segundo Nietzsche – conformam essa nebulosa indeterminada que oscila entre tantos polos: justificativas infundadas e racionalizações são o que mais se observa quando os fatos teimam em negar as ideias propugnadas por alguém, pondo a descoberto um amontoado de contradições – a nos compendiar tão caracteristicamente!

 

J.A.R. – H.C.

 

Luis Fernando Verissimo

(n. 1936)

 

O único animal

 

O homem é o único animal...

... que ri

... que chora

... que chora de rir

... que passa por outro e finge que não vê

... que fala mais do que papagaio

... que está sempre no cio

... que passa trote

... que passa calote

... que mata a distância

... que manda matar

... que esfola os outros e vende a pele

... que alimenta as crias, mas depois

cobra com chantagem sentimental

... que faz o que gosta escondido e o que não gosta em público

... que leva meses aprendendo a andar

... que toma aula de canto

... que desafina

... que paga para voar

... que pensa que é anfíbio e morre afogado

... que pensa que é bípede e tem problema de coluna

... que não tem rabo colorido, mas manda fazer

... que só muda de cor com produtos químicos ou de vergonha

... que tem que comprar antenas

... que bebe, fuma, usa óculos, fica careca, põe o dedo no nariz

e gosta de ópera

... que faz um boneco inflável da fêmea

... que não suporta o próprio cheiro

... que se veste

... que veste os outros

... que despe os outros

... que só lambe os outros

... que tem cotas de emigração

... que não tem uma linguagem comum a toda a espécie

... que se tosa porque quer

... que joga no bicho

... que aposta em galo e cavalo

... que tem gato e cachorro

... que tem lucro com os ovos dos outros

... que caça borboleta

... que usa gravata e pensa que Deus é parecido com ele

... que planta e colhe

... que planta e colhe e mesmo assim morre de fome

... que foi à Lua

... que apara os bigodes

... que só come carne crua em restaurante alemão

... que gosta de escargot (fora o escargot)

... que faz dieta

... que usa o dedão

... que faz gargarejo

... que escraviza

... que tem horas

... que irrita passarinho

... que poderia ter construído Veneza e destruído Hiroshima

... que faz fogo

... que se analisa

... que faz ginástica rítmica

... que sabe que vai morrer

... que sabe que vai morrer e mesmo assim vai atrás do motorista

que cortou sua frente só para xingar a mãe dele e se desagravar porque

não leva desaforo pra casa de vagabundo nenhum

... que sabe que vai morrer e mesmo assim, ou por causa disto,

fica fazendo caretas na frente do espelho

... que se compara com os outros animais

... que se mata

... que se pinta

... que tem uma cosmogonia

... que senta e cruza as pernas

... que chupa os dentes

... que pensa que é eterno.

 

O homem não é o único animal...

... que constrói casa, mas é o único que precisa de fechadura

... que foge dos outros, mas é o único que chama de retirada estratégica

... que se ajoelha, mas é o único que faz isto voluntariamente

... que trai, polui e aterroriza, mas é o único que se justifica depois

... que engole sapo, mas é o único que não faz isso pelo valor nutricional

... que faz sexo, mas é o único que precisa de manual de instruções.

 

Introspecção

(Aaron Westerberg: pintor norte-americano)

 

Nota:

 

(*). Trata-se, de fato, de uma passagem do pensamento nº 265 de Nietzsche (1844-1900), em “A Gaia Ciência”, literalmente: “265 – Supremo cepticismo. – Quais são então, em última análise, as verdades do homem? São os seus erros irrefutáveis.” (v. referência abaixo)

 

Referências:

 

NIETZSCHE, Frederico. 265 – Supremo cepticismo. In: __________. A gaia ciência. 6. ed. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa, PT: Guimarães Editores, 2000. p. 170.

 

VERISSIMO, Luis Fernando. O único animal. In: __________. poesia numa hora dessas? Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2010. p. 15-19.

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