O ser humano é um
leque de possibilidades, algumas positivas, outras deploráveis; alguém capaz de
valorar previamente o resultado de suas ações e, ainda assim, agir comandado
por suas emoções, pejadas de irracionalidade: neste poema, o autor gaúcho elenca
os atributos que somente a nós pertencem, e outros tantos que não nos são
exclusivos, acompanhados, sem embargo, por inflexões adversativas que trasladam
o discurso de volta ao plano de nossas particularidades.
O homem e suas
verdades – meros “erros irrefutáveis” (*), segundo Nietzsche – conformam essa
nebulosa indeterminada que oscila entre tantos polos: justificativas infundadas
e racionalizações são o que mais se observa quando os fatos teimam em negar as
ideias propugnadas por alguém, pondo a descoberto um amontoado de contradições –
a nos compendiar tão caracteristicamente!
J.A.R. – H.C.
Luis Fernando Verissimo
(n. 1936)
O único animal
O homem é o único
animal...
... que ri
... que chora
... que chora de rir
... que passa por
outro e finge que não vê
... que fala mais do
que papagaio
... que está sempre
no cio
... que passa trote
... que passa calote
... que mata a
distância
... que manda matar
... que esfola os
outros e vende a pele
... que alimenta as
crias, mas depois
cobra com chantagem
sentimental
... que faz o que
gosta escondido e o que não gosta em público
... que leva meses
aprendendo a andar
... que toma aula de
canto
... que desafina
... que paga para
voar
... que pensa que é
anfíbio e morre afogado
... que pensa que é
bípede e tem problema de coluna
... que não tem rabo
colorido, mas manda fazer
... que só muda de
cor com produtos químicos ou de vergonha
... que tem que
comprar antenas
... que bebe, fuma,
usa óculos, fica careca, põe o dedo no nariz
e gosta de ópera
... que faz um boneco
inflável da fêmea
... que não suporta o
próprio cheiro
... que se veste
... que veste os
outros
... que despe os
outros
... que só lambe os
outros
... que tem cotas de
emigração
... que não tem uma
linguagem comum a toda a espécie
... que se tosa
porque quer
... que joga no bicho
... que aposta em
galo e cavalo
... que tem gato e
cachorro
... que tem lucro com
os ovos dos outros
... que caça
borboleta
... que usa gravata e
pensa que Deus é parecido com ele
... que planta e
colhe
... que planta e
colhe e mesmo assim morre de fome
... que foi à Lua
... que apara os
bigodes
... que só come carne
crua em restaurante alemão
... que gosta de escargot
(fora o escargot)
... que faz dieta
... que usa o dedão
... que faz gargarejo
... que escraviza
... que tem horas
... que irrita
passarinho
... que poderia ter
construído Veneza e destruído Hiroshima
... que faz fogo
... que se analisa
... que faz ginástica
rítmica
... que sabe que vai
morrer
... que sabe que vai
morrer e mesmo assim vai atrás do motorista
que cortou sua frente
só para xingar a mãe dele e se desagravar porque
não leva desaforo pra
casa de vagabundo nenhum
... que sabe que vai
morrer e mesmo assim, ou por causa disto,
fica fazendo caretas
na frente do espelho
... que se compara
com os outros animais
... que se mata
... que se pinta
... que tem uma
cosmogonia
... que senta e cruza
as pernas
... que chupa os
dentes
... que pensa que é
eterno.
O homem não é o único
animal...
... que constrói casa,
mas é o único que precisa de fechadura
... que foge dos
outros, mas é o único que chama de retirada estratégica
... que se ajoelha,
mas é o único que faz isto voluntariamente
... que trai, polui e
aterroriza, mas é o único que se justifica depois
... que engole sapo,
mas é o único que não faz isso pelo valor nutricional
... que faz sexo, mas
é o único que precisa de manual de instruções.
Introspecção
(Aaron Westerberg:
pintor norte-americano)
Nota:
(*). Trata-se, de fato, de uma passagem do pensamento nº 265 de Nietzsche
(1844-1900), em “A Gaia Ciência”, literalmente: “265 – Supremo cepticismo. –
Quais são então, em última análise, as verdades do homem? São os seus erros irrefutáveis.”
(v. referência abaixo)
Referências:
NIETZSCHE, Frederico.
265 – Supremo cepticismo. In:
__________. A gaia ciência. 6. ed. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa,
PT: Guimarães Editores, 2000. p. 170.
VERISSIMO, Luis
Fernando. O único animal. In: __________. poesia numa hora dessas? Rio
de Janeiro, RJ: Objetiva, 2010. p. 15-19.
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